Sexta-feira, 30 de agosto de 2024 - 10h05
“No
Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo
e um corpo de funcionários puramente dedicado a interesses e objetivos, e
fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de
nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram
seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação
impessoal.”
Sérgio
Buarque de Holanda, in Raízes do Brasil
Logo
após a Independência do Brasil, os ministros tiveram seus vencimentos reduzidos
à metade do que habitualmente recebiam no tempo de D. João VI, por falta de
recursos do tesouro. Conta-se que, na ocasião, José Bonifácio, o Patriarca da
Independência, tendo recebido do banco – em espécie – o montante do mês do seu
ordenado, optou por guardar os bilhetes no fundo de seu chapéu, antes de ir ao
teatro. Ali, descuidado de seus pertences, o Primeiro-Ministro do
recém-inaugurado Império do Brasil teve furtado não apenas o chapéu, mas também
o seu conteúdo, ficando sem condições até de arcar com as despesas do jantar,
naquela noite. No dia seguinte, na presença do Conselho, José Bonifácio narrou
o ocorrido, ressaltando a extrema necessidade que agora se encontrava, e a sua
família. O Imperador entendeu o estado de penúria do seu Primeiro-Ministro e
decidiu então que o mesmo deveria ser indenizado com outro mês de ordenado,
dando as ordens neste sentido ao seu Ministro da Fazenda.
Contudo,
Martim Francisco (irmão de José Bonifácio e Ministro da Fazenda) decidiu não
obedecer às ordens do
Imperador, justificando tal atitude por “não haver lei que pusesse a cargo
do Estado os descuidos dos empregados públicos; que o ano tinha para todos12
meses, e não 13 para os protegidos”. Martim solicitou ainda a D. Pedro
retirar aquela ordem, porque não era exequível, informando ao Imperador que
repartiria o seu ordenado com o irmão, que viveriam ambos com mais parcimônia
naquele mês, o que seria mais justo e melhor do que dar ao País “o funesto
exemplo de se pagar ao Ministro duas vezes o ordenado de um só mês.”
O ano era 1823, o Brasil tornara-se
independente de Portugal havia oito meses, e os estadistas imperiais
tinham uma pátria a organizar, uma nação a construir, um povo a governar. Foi
essa estirpe de homens públicos, estadistas, representantes
da elite política e intelectual da época, liberal, culta e decente, que esboçou nossa primeira Constituição. Unidade, plena emancipação política,
liberdade de imprensa e ordem eram os valores que nortearam nossa primeira
Assembleia Constituinte, retardada o quanto possível por José Bonifácio,
segundo ele “[...] até que o Brasil, livre de inimigos e facções, pudesse
constituir-se sem baionetas.”
D.
Pedro I não aceitou a tentativa de redução do seu poder, dissolveu a Assembleia
Constituinte e nomeou em seguida um Conselho de Estado, que de fato elaborou a
Constituição, outorgada em março de 1824. Nossa primeira Constituição nasceu de
uma crise. Mas, ela serviu para que se ouvissem os ecos da guerra da independência dos Estados
Unidos, da Revolução Francesa e das novas repúblicas na América espanhola, e o
texto imperial estabeleceu uma
monarquia constitucional hereditária, mais liberal até que aquele proposto
pelos constituintes, embora garantisse amplos poderes ao monarca.
No
“Brasil Colônia”, o chamado “fator geográfico”, decorrente da extensão
territorial, da precariedade dos meios de circulação e comunicação, impusera a
arquitetura política colonial brasileira, pulverizando o poder nas Capitanias.
Portugal tolerou “dividir para governar”, estabelecendo então uma espécie de
“aristocracia tupiniquim” dos senhores das terras, o que na ocasião mostrou-se
a política adequada para maior arrecadação e melhor defesa fiscal da coroa. E a Colônia viveu sob o arbítrio dos grandes
proprietários rurais, o que naturalmente viciou as capacidades legislativa e
coercitiva do Estado. Mas, embora os próceres da Independência logo percebessem
que a nova estratégia político-administrativa deveria ser a de “centralizar
para governar”, condição primeira para a manutenção da unidade política do novo
país, a nação jamais conseguiu substituir de todo aquelas práticas coloniais arraigadas
de compartilhamento do poder.
De
fato, na ocasião da Independência, nosso território já era habitado por uma
numerosa nobreza latifundiária, opulenta e mais culta que aquela da Colônia,
uma reconhecida “mandocracia”, com poderes políticos acima inclusive daqueles
do Imperador. Com ela, haveria governo; sem ela, seria muito difícil. Não sem
razão, D. Pedro I concedeu mais títulos nobiliárquicos durante seu curto
reinado do que a monarquia portuguesa em 736 anos. Mal ou bem, foram essas
elites locais que na prática construíram nossa nacionalidade, contribuindo na
pacificação da nação, submetendo-se – sim – ao centralismo do Império, depois
ao da República, mas não sem deixar de impor, sempre de forma “mandocrática”,
seus diversos interesses particulares.
Sete
Constituições o País concebeu na solução das sucessivas crises, mas ainda hoje
o Estado continua fraturado politicamente, sem conseguir se livrar de uma
realidade de opressão, corrupção, ignorância, tributos extorsivos,
administração arbitrária, e dilapidação dos orçamentos, inolvidáveis heranças
de Portugal dos Bragança. Em pleno Século XXI, a nação brasileira está
polarizada, com os poderes da república em conflito e as instituições
desmoralizadas; a população submetida aos maiores impostos e ao pior serviço
público do mundo; um sistema político partidário hiper fragmentado, vocacionado
para lavagem do dinheiro público; e, principalmente, com as mesmas elites locais e regionais, sobrevivendo da disputa
feroz e corrupta pelos recursos da União, incapazes de articular qualquer
projeto democrático de interesse nacional.
O revanchismo
juvenil do regime militar acabou gerando uma “democracia relativa”, espécie de
“comunismo trans”, imposto por um bando criminoso que sequestrou a
Constituição - legitimado pela omissão do Congresso - mas que de fato como
resultados só trouxe insegurança jurídica e a atual crise constitucional. Nossa Corte Suprema, um colegiado
constitucionalista por vocação, desvirtuou-se em tribunal criminal de decisões
monocráticas, de juízes que julgam causas defendidas por cônjuges, e que
promovem com naturalidade, ao arrepio da própria Constituição, perseguições e
prisões políticas, condenações de parlamentares, absolvições de criminosos
confessos, prescrições premeditadas de crimes comuns.
As elites tupiniquins – militares, empresários, advogados, religiosos etc. – forjaram esse Brasil, único no mundo na sua forma de superar crises. É responsabilidade dos atuais estadistas retomar as rédeas da nação e resgatar a democracia, com uma nova Constituição. Hoje, é a única forma de obrigar os poderes restringirem-se às suas atribuições originais, de fazer o País “(re)constituir-se sem baionetas” - e sem sangue.
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