Segunda-feira, 15 de novembro de 2021 - 11h48
Desde
que a Academia Sueca concedeu o Nobel de Literatura, em 2016, ao cantor
norte-americano Bob Dylan, que as academias de letras, ao redor do mundo,
passaram a estender o olhar as outras artes. Na época, sob os protestos de
vários escritores, a Academia Sueca deixou bem claro que não foi o livro
publicado por ele que motivou o prêmio de literatura e sim a sua nova linguagem
poética/musical. Juntar as artes numa mesma casa está correto, desde que elas
estejam definidas na instituição: ARLCA.
O
mesmo deve ter acontecido agora com a escolha de Gilberto Gil para a Academia
Brasileira de Letras, o nosso Bob Dylan tropical: a motivação não foi o livro
de Gil titulado “Todas as Letras” (1996), uma coletânea de composições musicais,
nem os outros publicados em parceria. Todavia, ao publicar um livro, ele atendia
o principal pré-requisito da instituição, aos interessados em disputar um
assento na ABL, demonstrando um velho sonho.
Está
fora de cogitação quaisquer discussões sobre Gil, um dos expoentes da
Tropicália e um dos principais nomes da Música Popular Brasileira (MPB), que já
lançou mais de 40 álbuns e é um dos artistas brasileiros mais conhecidos e
reverenciados no mundo. Contudo, a mim preocupa a confusão que o jovem de hoje irá
fazer com esta tentativa da ABL de dialogar com a arte popular, valorizando
caminhos distintos da arte literária.
Marco
Lucchesi, presidente da ABL, está corretíssimo quando diz que a cultura erudita
e a popular não são inimigas, mas não está certo quando compara a cultura a um
pássaro e conclui que sem uma das asas ele não vai longe. Há centenas de anos, a
literatura e a música (erudita e popular) sempre cresceram e voaram juntas, sem
que uma dependesse da asa da outra, porque são distintas e não se
interdependem. É a evolução tecnológica que está corroendo as artes literárias
e vejo essa tentativa de abertura da ABL como um pedido de socorro velado, à
sociedade, pena que os eruditos não enxergam que a emenda poderá ser pior do
que o soneto: − não basta
ler Machado, tem que ouvir Gil e assistir novela global, com Fernanda
Montenegro. Seria essa a mensagem, para que o pássaro da cultura voe altaneiro,
com uma asa erudita e outra popular?
Uma composição feita a partir de 7 notas musicais, pode ser
considerada Literatura? O que vale mais a letra ou a melodia? Ambas são
valiosíssimas, para a cultura, mas são distintas. Lembro de Asa Branca,
composição popular, sendo interpretada, nos anos 1970, pela orquestra sinfônica
de Moscou, acompanhada por um magnifico coral que, logo após a apresentação, foi
aplaudida de pé pelos frequentadores do teatro, que nunca haviam ouvido ou lido
uma única palavra da “Flor do Lácio, inculta e bela”. Quem merece o crédito do
sucesso, Luiz Gonzaga ou Humberto Teixeira? Por que será que eu me arrepio todo
ao ouvir as composições do russo Sergei Rachmaninoff,
se não leio música, nem
sei fazer música clássica? Porque
a música é feita em um outro patamar das artes, com outras ferramentas,
atingindo uma parte diferenciada do cérebro humano, aquela que não precisa de livros,
mas de sangue, jorrando, entremeado a sete notas, no âmago do sentimento.
Aqui vale outra ressalva interrogativa: será que sem a melodia
as letras do Gil teriam o mesmo impacto? A mim me parece que a ABL está usando
Fernanda Montenegro e Gilberto Gil como tábuas de salvação no mar incerto da
tecnologia. Hoje, as artes literárias estão chegando ao público alvo, via
celulares, sem o glamour do lançamento de um livro, em uma livraria famosa, sem
a outrora valorização de uma obra de ficção. Logo logo, tudo que precisamos
para a sobrevivência na Terra nos será enviado via autofalantes virtuais.
A poesia, lida ou declamada, não possui o mesmo valor cultural de
um funk. Ao querer que Gil e Fernanda sejam os elos de ligação entre os
monstros da literatura com a arte dramática da novela global e o show de música
sertaneja, é como se a ABL estivesse sendo sadomasoquista, insuflando o pássaro
da cultura a voar com asas de tamanhos e feitios diferentes. Não confundam
minhas palavras: ambos merecem a ABL, mas sob outro prisma, jamais sobre essa
babaquice de união de arte erudita com arte popular. Todas as artes podem e
devem caminhar juntas, como um viveiro com muitos e diferenciados pássaros,
belos e sonoros, como um jardim com primorosas e variadas flores. Não se
surpreendam se Eduardo Kobra se candidatar a uma cadeira na ABL.
A rotulagem não é um problema, a
poesia independe do formato e do suporte, evidentemente. Literatura é arte e
arte é forma, é a realidade recriada através do espírito do artista e
retransmitida ao público através da língua. A plataforma na qual está inserida,
seja como texto em um livro, como imagem em uma tela, como canção em um aplicativo,
deveria ser uma questão menos relevante.
Deveria!!! Entretanto, a Academia, em
mais de 120 anos de história, jamais admitiu um compositor, negro ou não, entre
tantos, de boa cepa, existentes Brasil afora. A mulher que trabalhava no teatro
e no cinema, por muitos anos, não passava de reles prostituta. Negro na ABL? só
o fundador. A elite branca que comandou a ABL, por um longo tempo, proibiu a
entrada de mulheres, esnobou grandes mestres das artes cênicas, da música e até
mesmo das artes literárias, sua maior razão de existência, entre eles o mulato
Lima Barreto, os poetas Cecília Meireles e Carlos Drummond de Andrade, além de
escritores do naipe de Graciliano Ramos, Monteiro Lobato, Érico Veríssimo,
Dalton Trevisan e Raduan Nassar. Por que será que a
ABL nunca se ofereceu a Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Cartola, Nélson
Gonçalves, Portinari e tantos outros, e agora aparece com a cadeira 20 para Gil?
Eu sei que a sociedade, com a
evolução dos costumes, está remodelando conceitos, via modelos importados dos
EUA e Europa, daí a valorização dos negros e das mulheres. Nada mais justo! Não
fosse isso jamais Fernanda e Gil conviveriam com a nata da sociedade literária,
se bem que esta nata de há muito vem dando sinais de vencida, inapropriada para
consumo. Para a maioria dos jovens de hoje, separados conforme o poder
aquisitivo, bom mesmo é um pancadão nas praças da periferia ou nos clubes da
burguesia, quem sabe, nos salões das universidades, a maior concentração de
sovacos ilustrados do país. Tudo junto e misturado, aguardando vaga na ABL.
Enquanto
isso a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Ibope, em 2016,
depois de ouvir 5.012 pessoas, representando 93% de pessoas alfabetizadas,
concluiu que 44% da população brasileira não lê absolutamente nada e 30% nunca
comprou um livro. Se estendermos a pesquisa ao universo de 50 países, o Brasil
ocupa o 37º lugar no ranking mundial dos leitores. Andar com fé eu vou,
que a fé não costuma faiá.
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