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Crônica

Cadeira 20


Cadeira 20 - Gente de Opinião

Desde que a Academia Sueca concedeu Nobel de Literatura, em 2016, ao cantor norte-americano Bob Dylan, que as academias de letras, ao redor do mundo, passaram a estender o olhar as outras artes. Na época, sob os protestos de vários escritores, a Academia Sueca deixou bem claro que não foi o livro publicado por ele que motivou o prêmio de literatura e sim a sua nova linguagem poética/musical. Juntar as artes numa mesma casa está correto, desde que elas estejam definidas na instituição: ARLCA.

O mesmo deve ter acontecido agora com a escolha de Gilberto Gil para a Academia Brasileira de Letras, o nosso Bob Dylan tropical: a motivação não foi o livro de Gil titulado “Todas as Letras” (1996), uma coletânea de composições musicais, nem os outros publicados em parceria. Todavia, ao publicar um livro, ele atendia o principal pré-requisito da instituição, aos interessados em disputar um assento na ABL, demonstrando um velho sonho.

Está fora de cogitação quaisquer discussões sobre Gil, um dos expoentes da Tropicália e um dos principais nomes da Música Popular Brasileira (MPB), que já lançou mais de 40 álbuns e é um dos artistas brasileiros mais conhecidos e reverenciados no mundo. Contudo, a mim preocupa a confusão que o jovem de hoje irá fazer com esta tentativa da ABL de dialogar com a arte popular, valorizando caminhos distintos da arte literária.

Marco Lucchesi, presidente da ABL, está corretíssimo quando diz que a cultura erudita e a popular não são inimigas, mas não está certo quando compara a cultura a um pássaro e conclui que sem uma das asas ele não vai longe. Há centenas de anos, a literatura e a música (erudita e popular) sempre cresceram e voaram juntas, sem que uma dependesse da asa da outra, porque são distintas e não se interdependem. É a evolução tecnológica que está corroendo as artes literárias e vejo essa tentativa de abertura da ABL como um pedido de socorro velado, à sociedade, pena que os eruditos não enxergam que a emenda poderá ser pior do que o soneto:  não basta ler Machado, tem que ouvir Gil e assistir novela global, com Fernanda Montenegro. Seria essa a mensagem, para que o pássaro da cultura voe altaneiro, com uma asa erudita e outra popular?  

Uma composição feita a partir de 7 notas musicais, pode ser considerada Literatura? O que vale mais a letra ou a melodia? Ambas são valiosíssimas, para a cultura, mas são distintas. Lembro de Asa Branca, composição popular, sendo interpretada, nos anos 1970, pela orquestra sinfônica de Moscou, acompanhada por um magnifico coral que, logo após a apresentação, foi aplaudida de pé pelos frequentadores do teatro, que nunca haviam ouvido ou lido uma única palavra da “Flor do Lácio, inculta e bela”. Quem merece o crédito do sucesso, Luiz Gonzaga ou Humberto Teixeira? Por que será que eu me arrepio todo ao ouvir as composições do russo Sergei Rachmaninoff, se não leio música, nem sei fazer música clássica? Porque a música é feita em um outro patamar das artes, com outras ferramentas, atingindo uma parte diferenciada do cérebro humano, aquela que não precisa de livros, mas de sangue, jorrando, entremeado a sete notas, no âmago do sentimento.

Aqui vale outra ressalva interrogativa: será que sem a melodia as letras do Gil teriam o mesmo impacto? A mim me parece que a ABL está usando Fernanda Montenegro e Gilberto Gil como tábuas de salvação no mar incerto da tecnologia. Hoje, as artes literárias estão chegando ao público alvo, via celulares, sem o glamour do lançamento de um livro, em uma livraria famosa, sem a outrora valorização de uma obra de ficção. Logo logo, tudo que precisamos para a sobrevivência na Terra nos será enviado via autofalantes virtuais.

A poesia, lida ou declamada, não possui o mesmo valor cultural de um funk. Ao querer que Gil e Fernanda sejam os elos de ligação entre os monstros da literatura com a arte dramática da novela global e o show de música sertaneja, é como se a ABL estivesse sendo sadomasoquista, insuflando o pássaro da cultura a voar com asas de tamanhos e feitios diferentes. Não confundam minhas palavras: ambos merecem a ABL, mas sob outro prisma, jamais sobre essa babaquice de união de arte erudita com arte popular. Todas as artes podem e devem caminhar juntas, como um viveiro com muitos e diferenciados pássaros, belos e sonoros, como um jardim com primorosas e variadas flores. Não se surpreendam se Eduardo Kobra se candidatar a uma cadeira na ABL.

A rotulagem não é um problema, a poesia independe do formato e do suporte, evidentemente. Literatura é arte e arte é forma, é a realidade recriada através do espírito do artista e retransmitida ao público através da língua. A plataforma na qual está inserida, seja como texto em um livro, como imagem em uma tela, como canção em um aplicativo, deveria ser uma questão menos relevante.

Deveria!!! Entretanto, a Academia, em mais de 120 anos de história, jamais admitiu um compositor, negro ou não, entre tantos, de boa cepa, existentes Brasil afora. A mulher que trabalhava no teatro e no cinema, por muitos anos, não passava de reles prostituta. Negro na ABL? só o fundador. A elite branca que comandou a ABL, por um longo tempo, proibiu a entrada de mulheres, esnobou grandes mestres das artes cênicas, da música e até mesmo das artes literárias, sua maior razão de existência, entre eles o mulato Lima Barreto, os poetas Cecília Meireles e Carlos Drummond de Andrade, além de escritores do naipe de Graciliano Ramos, Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, Dalton Trevisan e Raduan Nassar. Por que será que a ABL nunca se ofereceu a Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Cartola, Nélson Gonçalves, Portinari e tantos outros, e agora aparece com a cadeira 20 para Gil?

Eu sei que a sociedade, com a evolução dos costumes, está remodelando conceitos, via modelos importados dos EUA e Europa, daí a valorização dos negros e das mulheres. Nada mais justo! Não fosse isso jamais Fernanda e Gil conviveriam com a nata da sociedade literária, se bem que esta nata de há muito vem dando sinais de vencida, inapropriada para consumo. Para a maioria dos jovens de hoje, separados conforme o poder aquisitivo, bom mesmo é um pancadão nas praças da periferia ou nos clubes da burguesia, quem sabe, nos salões das universidades, a maior concentração de sovacos ilustrados do país. Tudo junto e misturado, aguardando vaga na ABL.

Enquanto isso a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Ibope, em 2016, depois de ouvir 5.012 pessoas, representando 93% de pessoas alfabetizadas, concluiu que 44% da população brasileira não lê absolutamente nada e 30% nunca comprou um livro. Se estendermos a pesquisa ao universo de 50 países, o Brasil ocupa o 37º lugar no ranking mundial dos leitores. Andar com fé eu vou, que a fé não costuma faiá.

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