Segunda-feira, 16 de dezembro de 2024 - 13h12
Auxenxervir rebentou num
bairro pobre. Negro! desde cedo a pobreza o marcou com pouca gordura, músculos
minguados. Esquelético! o primeiro apelido veio do aconchego materno: Neguinho!
Ainda não sabia se pela cor ou pela dimensão. Entre os da mesma idade, era o
menor. Pior que as medidas do corpo era o tamanho do absurdo do nome civil. Antes
dos sete, quando alguém perguntava, como é teu nome, Neguinho? Ele
respondia cabisbaixo: Neguinho, é assim que minha mãe me chama!
Na escola os colegas repetiram
o apelido, contudo, a professora, também afrodescendente, envergonhada,
preferiu criar uma variante do verdadeiro nome e passou a chama-lo Xenxe, como
se fosse o masculino de Xuxa, mas não se acanhou de buscar a origem daquele
nome estranho. Em vão! Era um nome singular, único. A mãe informou à professora:
no cartório, me disseram tratar-se de um nome de origem francesa. Aí, do
alto da sua ignorância europeia, porém, querendo o melhor para o futuro do filho,
engoliu o tal Auxenxervir, sem questionamentos estéticos ou etimológicos. Do
colo veio o nome mais significativo, Neguinho! Embora carinhoso, mamãe sabia
tratar-se de triste marca oriunda das origens escravocratas! Na rua, adquiriu outros
apelidos: Zezinho, Magrelo, Psiu! Ei!
Era tão grande o desprezo que
sentia pelo nome solitário, que acolhia todo e qualquer apelido. Nem o ouvido,
nem o espelho aceitavam aquela coisa estranha. Xenxe não pegou, porém era mais
audível, mais respeitoso com as palavras, não era preconceituoso. Na intimidade
a mãe continuava chamando o filho único de Neguinho, lembrava o outro, Negão!
Único amor da vida, que partira para São Paulo: medo de assumir, sem recursos, um
rebento negro no mundo dos brancos. Na salinha da alfabetização, Xenxe
encontrou um cantinho para ser acarinhado, era nome, verdade, não era
apelido, era alcunha. E há alguma diferença, professora? Sei lá, alcunha é mais
literário, está nOs Sertões!
Xenxe cresceu com a cidade! Viu
chegar o ginásio, o juiz, o promotor. Com o progresso da pecuária, viu a mãe
arrumar emprego fixo de doméstica, antes, ela socializava a fabricação de
cocada, para o filho e outras crianças do bairro venderem pelas ruas. Ele
ralava o coco! Neguinho sabia conversar, gostava de ler, um vendedor nato. Com
a idade, entrou para o Tiro de Guerra! O sorriso uniu as orelhas, quando o
sargento, ignorando a exuberância do nome, o apelidou, atendendo à ordem
alfabética, de número três. Diante do espelho, fardado, gritou bem alto:
Número três! Ele mesmo respondeu: presente, sargento!
No ensino fundamental, um
professor lhe informou que, em Portugal, existe um livrão nos cartórios, com
todos os nomes próprios passíveis de serem dados a novas criaturas humanas,
nada acontece fora das sugestões do livro lusitano: Com certeza Auxenxervir
não está no livrão português. Estaria no da França? Na AI?
Por força do destino, a mãe de
Xenxe encontrou emprego de doméstica, na casa do juiz Manoel Alves. No primeiro
dia de trabalho, levou à tiracolo o filho, já maior de idade, com carta de
apresentação do sargento Lima e o ensino médio concluído. Quando o juiz chegou
para o almoço e deu de cara com o rapaz, suado, a cor negra brilhando ao sabor
do sol, contratado pela esposa, para auxiliar a mãe nos serviços gerais, perguntou:
- Como é seu nome, meu
filho?
Ele ficou branco, isto é, clareou a pele com o inusitado da pergunta.
- É Auxenxervir, mas
o doutor pode me chamar de Neguinho.
- Auxenxer o que,
menino? Perguntou o juiz em voz alta e autoritária.
- Auxenxervir. Respondeu
com voz temerosa, mas pronunciando melhor as sílabas.
- Minha nossa senhora, onde sua mãe foi arrumar
esse nome?
- Disseram que é nome
francês. Tentou
remediar o erro da mãe
- Você tem pai?
- Tenho e não tenho,
ele foi embora pra São Paulo antes que eu nascesse.
- E você, se sente bem
com esse nome esquisito e o apelido preconceituoso?
- Claro que não. Eu não
sou branco, mas não mereço ser reduzido a Neguinho e muito menos a Auxenxervir.
- Já pensou em trocar
de nome?
- Penso nisso todo dia
e toda hora. Não me sinto com cara de Auxenxervir. Isso é possível?
- Sim, mas temos que
montar um processo. Vai dar um pouquinho de trabalho. Amanhã compareça na sala
do fórum, no prédio da prefeitura, que eu vou lhe ajudar. Sabe onde é?
- Sei sim. Tá fechado,
doutor. Auxenxervir
voltou ao trabalho braçal, com todos os dentes à mostra, o contentamento o
invadiu por inteiro, as forças se renovaram, como por encantamento.
Depois das explicações da
esposa e da mãe do jovem servente, o juiz entrou em casa pensando: embora o
nome civil seja o elemento identificador de uma pessoa na sociedade, componente
do Direito da personalidade, servindo como projeção de sua existência, ninguém
merece uma aberração. O próprio Auxenxervir não se considerava dono de um nome
tão esdrúxulo.
Desde que se entendeu como
gente, desde que aprendeu a ler e a escrever, desde que cursou o ensino
fundamental e médio com louvor, Auxenxervir abriu mão desse direito existencial,
com sotaque francês. A mudança de nome, enfim, selaria a paz entre ele e o Direito
da personalidade. Com a cor até se conformou, Neguinho! Já não se revoltava com
a imagem refletida, nem com os apelidos preconceituosos, eram muitos os
parceiros de cor, no Sertão da Bahia. Entrementes, o ouvido o maltratava, era
um martírio ouvir alguém pronunciando o nome francês.
Zé do bode, melhor amigo de
Neguinho, não se sentia em situação de bullying, simplesmente porque alguém o chamava,
como se ele pertencesse ao bode e vice-versa. Tarefa honrosa: levar o bode todos os dias até
à praça central da cidade, para se alimentar, com o capim dos canteiros. Às
vezes o bode exagerava e comia plantas decorativas, além de ervas daninhas,
causando tremenda confusão. Nada que não se resolvesse com o bode sendo
aprisionado e levado de volta ao quintal de José Armando Guerra. Guerra só no
apelido, um jovem pacifico.
Auxenxervir compareceu à
sala do juiz, conforme combinado; forneceu os documentos que possuía; deu
entrada na petição, solicitando troca de nome e percebeu como a justiça se
desenrola rapidamente, quando embute a força de uma autoridade: em dois dias, Neguinho
deixara de ser francês, para ser o afrodescendente Antônio dos Santos,
brasileiríssimo! Novo Registro de Nascimento, CPF, Nova Identidade, Novo Título
de Eleitor, enfim um novo homem! E o que era mais importante: nos poucos dias
que Antônio estivera no fórum, distribuiu competência, carisma e um sorriso de
dentes brancos perfeitos, gerador de simpatia, influenciando Manoel Alves numa
decisão polêmica, mas não injusta. Bastou usar a força da amizade com alguns
desembargadores e o juiz conseguiu, junto ao TJ, a nomeação extraordinária de
Antônio dos Santos, como Oficial de Justiça, ignorando concurso público. O salário e o cargo recompensariam o
sofrimento da origem, embranqueceriam a existência.
Assim que Antônio
recebeu o primeiro salário, junto com a mãe, mudou de casa e de bairro, passou
a frequentar o famoso Cabaré 7 Portas. O primeiro a chegar, nove em ponto. Às
onze já estava em casa. Respeitado, bebia pouco, transferia ao ambiente mundano
a autoridade e o respeito do magistrado. Logo conquistou a amizade das putas,
que disputavam os fregueses, no salão central do cabaré. Sempre sozinho, gostava
de se sentar na mesa do fundo, junto aos músicos: com o escurinho, a cor e a
magreza pessoal, quase ninguém o via, exceto quando resolvia dançar, gostava de
músicas lentas e românticas, bolero, chorinho, samba canção, às vezes se
aventurava num tango, era bom de bate coxas! O Cabaré virou vício, nenhuma puta
o ignorava, preto respeitador, simpático. “Tô pagando”!
Dono de vocabulário
encantador, Tonho elogiava as meninas com comparações significativas. De per si
costumava dizer ao pé da orelha: - minha linda você é encantadora, tem o
corpo de um violão. De tanto repetir para as meninas que elas tinham corpo
de violão, recebeu, fraternalmente, o troco: - Tonho, se nós somos o violão, você
é nosso Cavaquinho de Cabaré. Do cabaré para a introspecção do
espelho, demorou pouco. A criatividade o pegou em cheio: - que legal, um
magrelo preto que nem eu ser comparado a um cavaquinho! Me sinto sonoro.
Anos depois, durante
uma conferência para alunos da primeira faculdade de direito da cidade, na qual
Antônio dos Santos encontrava-se matriculado, entre outros assuntos, o juiz
afirmou: no dia-a-dia, por conta da afetividade, amizade ou carinho, é de
nossa cultura atribuir apelidos aos nomes das pessoas. São meros mecanismos
informais designativos, não possuindo, em linha de princípio, qualquer efeito
jurídico. O nome é direito da personalidade, apelido não, salvo hipocorístico,
pseudônimo, heterônimo, o disposto na Lei, ou o advindo da interpretação
judicial, mediante processo. Os alunos se entreolharam em silêncio, cada um
possuía seu próprio apelido.
Do cabaré, o novo apelido
de Tonho ganhara as ruas, chegando inclusive ao respeitoso local de trabalho.
Sem se dar conta, o juiz foi ouvido, perguntando a um auxiliar: - João, por
favor, veja se o Cavaquinho de Cabaré já chegou…
- Cavaquinho, está chovendo,
tira a roupa da corda, meu filho!
Como seria o futuro literário do Cavaquinho
de Cabaré? Por este autor o conto termina aqui, do contrário vira novela.
No entanto, um colega ficcionista cochichou aos meus ouvidos: Tonho poderia
procurar o pai, casar-se com uma polaca goiana, que o conhecera no Cabaré; da
união, nasceriam três auxenxervirzinhos, clareando a descendência. Terminaria o
curso de direito, faria concurso para promotor, passaria em 1º lugar e se
estabeleceria na cidade onde nascera. Poderia se envolver numa briga,
dentro do cabaré, perdendo a própria vida ou tirando a vida de alguém. O conto excederia
em dramaticidade.
Outros possíveis
acontecimentos do futuro se entrelaçariam com a esperança e alguns poderiam se
realizar na mente fabulativa dos contistas, à moda Dalton Trevisan. Poderia
surgir um novo vampiro: o da Baixa dos Sapateiros.
Tomara que cada leitor imagine
um novo final feliz, é o mínimo que poderão fazer para atapetar a negritude de
Tonho, o simpático neguinho, que surfou nas ondas sonoras do Cavaquinho
de Cabaré…
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