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Crônica

Confraria dos Assassinos do Tempo


Confraria dos Assassinos do Tempo - Gente de Opinião

Matar o tempo, ocupar-se com algo insignificante, por um determinado período, talvez seja tarefa aparentemente fácil. Contudo o tempo cronológico e o tempo histórico são medidos de forma diferenciada e tudo tem a ver com as variações da sociedade. A expressão matar o tempo, há vinte ou cinquenta anos, não pode ser interpretada da mesma forma que hoje. Atualmente, quando um jovem entra num transporte coletivo, portando um celular, achando que está matando o tempo, não se dá conta, simbolicamente, do tempo pedindo pra morrer, diante de tantas iniquidades e joguinhos inúteis visitados, salvo raríssimas exceções.

Em meados do século XX era comum as pessoas se juntarem nas calçadas das casas, em pequenas e médias cidades, para matarem o tempo, proseando entre um café e outro; uma pinguinha aqui outra acolá; a narrativa de causos verdadeiros ou não; as travessuras do gás metano, saindo barulhento das entranhas dos mais velhos, sem avisar, despertando gargalhadas masculinas e o dedo duro de alguém, apontando de onde saíra a traquinice. As mulheres ainda não haviam conquistado o direito de participar dessas reuniões machistas.  Apesar da galhofa do inusitado e do mau cheiro de alguns enxeridos, o respeito se fazia presente. Em se tratando de peido senil, o instante igualava as classes sociais e a cor dos participantes. Naquela época, a palavra americana – bullying – não ditava normas no sertão. O riso era saudável e ajudava no propósito maior – matar o tempo inútil.

Na calçada do médico Arlindo Amado, no centro da cidade de Senhor do Bonfim, sertão da Bahia, juntava-se, todo início de noite, um célebre grupo de prosadores: advogados, políticos, médicos, comerciantes, autodidatas, de vez em quando aparecia até um padre, na roda de amigos. Sentavam-se em cadeiras postadas em um semicírculo, de costas para a casa do doutor, mas de frente para a praça central da cidade. A calçada do conhecido médico possuía cerca de quarenta metros quadrados. Não faltavam café, refresco de pitanga, catuaba, uma pinguinha de cabeça e outras iguarias. Tantos eram os assuntos, que exclamações, interrogação e reticências pulavam salientes de cabeça em cabeça. Falava-se de tudo, de futebol a política, passando por religião, ciência, mentiras de todo naipe, contadas com a mesma cara de seriedade das verdades. Quem tinha conhecimento saberia separar, com um sorriso nos lábios, o joio do trigo, do contrário, engoliria verdades, como mentiras e vice-versa.

Não havia pudor na oratória, essa era a regra, aliás não havia regra. Entretanto, o dono da casa estabelecia, sem muito critério, o tempo que cada um tinha para matar o tempo. Quando o causo era bom, a atenção dobrava e o tempo não morria, pedia pra virar a ampulheta, no limite da tolerância da luz elétrica: às 10 da noite. Hora em que a prefeitura desligava o gerador de energia da cidade de 45 mil habitantes. Mais de uma vez, alguns assuntos precisaram da ajuda de lampiões a querosene, ou do uso de um gerador à diesel do dono da casa: conforme o palestrante, era importante a veracidade do olho no olho, vencendo a escuridão e a morte do tempo. Pedro Amorim gostava, por exemplo, de narrar detalhes de cirurgias complicadas, efetuadas no Hospital Regional. O silêncio, a noite e a morte, mesmo unidos, não conseguiam vencer o vozeirão do Pedro, relatando o que sabia fazer como ninguém: estender o tapete da vida.

Moisés, preto velho, autodidata, viciado em bíblia e em jornais, costumava acompanhar os encontros diários das tais conversas, ocorridas a partir do escurecer. Poucos dias depois, a ausência de Moisés foi sentida, justificando a explicação dada por Dr. Amado: Moisés viajou para Salvador, foi participar da formatura de um filho, em medicina. Segundo Moisés me informou, o filho pediu ao pai para aproveitar a viagem e fazer, na capital, exames de catarata e reumatismo, uma vez que não havia especialistas dessas enfermidades, aqui em nossa cidade. O primogênito de Moisés, com certeza, seria mais um frequentador da Confraria dos Assassinos do Tempo, na calçada do médico Arlindo Amado.

Naquela época, a rigor, matar o tempo era uma tarefa não muito fácil. Alguns chegavam e saíam calados, embora se sentissem com a cabeça limpa, como se o bate papo de inutilidades funcionasse como um shampoo para limpar o cérebro. Outros vinham pela gratuidade da socialização do ato de matar o tempo: o café, a pinguinha, o whisky, os salgadinhos de rico, o aperto de mão, o abraço, raro, mas valorizado. poucos só viam os participantes nos consultórios, nos escritórios chiques, nas missas de domingo, etc. Arlindo Amado era um sujeito com pouco mais de 1,60m de altura, branco, cabeça grande, meio desengonçado, membros maiores do que o tronco, pernas finas, parecia um boneco gostoso equilibrista, tipo o que se compra em feiras livres para presentear os filhos. Já o outro médico, Pedro Amorim, assíduo frequentador da calçada da confraria, era alto, forte, corpo de ex-jogador de futebol, competente, o mais rico do grupo, com especializações feitas no Rio de Janeiro, pronto a responder quaisquer dúvidas dos colegas, em seu consultório chique. Era cirurgião geral, operava toda e qualquer enfermidade. Um faz tudo!

Em cidade pequena, todo mundo se conhece. Foi uma festa para o grupo, quando Moisés retornou da capital, com um filho formado em medicina e um pacote, com fortes antibióticos para curar o reumatismo das pernas. Nesta noite, ele foi a estrela do púlpito imaginado, falou por quase duas horas, externando seu orgulho por ter formado um filho em medicina, mesmo sendo preto. Os parcos lucros da pequena loja de tecidos contribuíram, mas Moisés aproveitou o momento, para agradecer a doação silenciosa de alguns amigos da confraria. Falou quase sem interrupções, obrigando o uso dos lampiões a querosene, por mais de uma hora. Já se aproximava da meia noite, quando o filho médico o acompanhou até a casa da família, na Rua Manoel Vitorino. O silêncio vestiu o tempo com dignidade e as lágrimas coletivas não permitiram interferência da morte: o tempo cronológico foi transformado em tempo histórico, imortalizando o instante, na memória dos familiares de Moisés e de muitos colegas de confraria.

Pouca gente sabia, exceto Pedro e Amado, por serem médicos e íntimos, que Moisés inventara um colírio à base de água fervida com malacacheta, um mineral também conhecido como mica. Após coar, cuidadosamente, ele acrescentava três gotas do sumo da planta quebra pedra, em 10 ml da solução de mica e usava três vezes ao dia, nos dois olhos. A solução, para espanto dos médicos de Salvador, não só paralisou a catarata de um olho, como impediu que ela se alastrasse ao outro. Aos 82 anos, Moisés ainda lia jornal.

O longo desabafo daquela noite serviu para informar aos demais o que os mais íntimos já sabiam, Moisés não tomava antibióticos. Era autodidata, viciado em bíblia e em jornais, lia todo dia, geralmente pela manhã, lia inclusive propagandas. Moisés não gostava da alopatia, não tomava remédios fabricados em laboratórios, era adepto das plantas medicinais e de práticas alternativas. Ao chegar em casa, a primeira coisa que fez foi colocar o pacote com as caixas de antibióticos e anti-inflamatórios sobre a geladeira, esquecendo as sugestões do especialista que havia sido, inclusive, professor de Daniel.

Na semana seguinte, depois que Pedro Amorim arranjou uma sala confortável para instalar o consultório de Daniel, o novo pediatra de Senhor do Bonfim, Moisés voltou a frequentar as reuniões da confraria: Apareceu taciturno, solitário, escondendo os dentes, sério, olhar distante e andando com dificuldade, puxava de uma perna. Segurava nas mãos, com firmeza, um pacote, contracenando com a dor. De imediato aflorou à memória de Pedro uma frase de Hipócrates: “curar quando possível; aliviar quando necessário; consolar sempre”.

Depois que percebeu que a dor era insuportável e os remédios alternativos não surtiam efeito, Moisés pediu conselhos aos amigos médicos, mostrando os antibióticos, anti-inflamatórios e a receita do médico especialista. Se lhe fosse permitido, mataria na memória o tempo da consulta, em Salvador, esquecendo aquele pacote, pra sempre, sobre a geladeira. Pra sempre era tempo demais pra matar. Ouviu o especialista, o filho e os amigos…

 Três dias depois que ele tomou os remédios, o fígado inchou e ele veio a óbito. A família ouviu as desculpas médicas, educadamente, mas sabia que foi estupidez forçar o uso de antibióticos e anti-inflamatórios em um corpo virgem, garantindo que voltaria a andar, normalmente. Moisés era teimoso, exigente, voz forte, só se deixou seduzir, porque entre os doutores da equipe médica, estava um filho querido, formados na UFBA, sustentado com o suor e o amor que sentia por ele. Foi um forte trauma para o filho, a confraria o perdoou, pois sabia das boas intenções.

No Nordeste, erros médicos são tratados com frases reconfortantes: não foi o médico que errou, foi Deus que o levou. “Feliz serás e sábio terás sido se a morte, quando vier, não te puder tirar senão a vida”. O legado de Moisés foi maior do que o instante da morte. Durante uma semana, Arlindo Amado decretou luto oficial na confraria: mandava colocar, na calçada da casa dele, as cadeiras vazias, presas por um laço de fita preta. Durante muitos anos, o tempo não aceitou morrer naquelas poucas horas escolhidos pelos confrades para matar o tempo. O tempo foi renomeado e tatuado na memória dos confrades, como saudade! e saudade é o tempo que fica, não morre!

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