Sexta-feira, 3 de janeiro de 2025 - 13h56
Matar o tempo,
ocupar-se com algo insignificante, por um determinado período, talvez seja
tarefa aparentemente fácil. Contudo o tempo cronológico e o tempo histórico são
medidos de forma diferenciada e tudo tem a ver com as variações da sociedade. A
expressão matar o tempo, há vinte ou cinquenta anos, não pode ser
interpretada da mesma forma que hoje. Atualmente, quando um jovem entra num
transporte coletivo, portando um celular, achando que está matando o tempo, não
se dá conta, simbolicamente, do tempo pedindo pra morrer, diante de tantas
iniquidades e joguinhos inúteis visitados, salvo raríssimas exceções.
Em meados do século XX era
comum as pessoas se juntarem nas calçadas das casas, em pequenas e médias
cidades, para matarem o tempo, proseando entre um café e outro; uma pinguinha
aqui outra acolá; a narrativa de causos verdadeiros ou não; as travessuras do
gás metano, saindo barulhento das entranhas dos mais velhos, sem avisar,
despertando gargalhadas masculinas e o dedo duro de alguém, apontando de onde
saíra a traquinice. As mulheres ainda não haviam conquistado o direito de
participar dessas reuniões machistas. Apesar
da galhofa do inusitado e do mau cheiro de alguns enxeridos, o respeito se
fazia presente. Em se tratando de peido senil, o instante igualava as classes
sociais e a cor dos participantes. Naquela época, a palavra americana –
bullying – não ditava normas no sertão. O riso era saudável e ajudava no
propósito maior – matar o tempo inútil.
Na calçada do médico
Arlindo Amado, no centro da cidade de Senhor do Bonfim, sertão da Bahia,
juntava-se, todo início de noite, um célebre grupo de prosadores: advogados,
políticos, médicos, comerciantes, autodidatas, de vez em quando aparecia até um
padre, na roda de amigos. Sentavam-se em cadeiras postadas em um semicírculo, de
costas para a casa do doutor, mas de frente para a praça central da cidade. A
calçada do conhecido médico possuía cerca de quarenta metros quadrados. Não
faltavam café, refresco de pitanga, catuaba, uma pinguinha de cabeça e outras
iguarias. Tantos eram os assuntos, que exclamações, interrogação e reticências pulavam
salientes de cabeça em cabeça. Falava-se de tudo, de futebol a política,
passando por religião, ciência, mentiras de todo naipe, contadas com a mesma
cara de seriedade das verdades. Quem tinha conhecimento saberia separar, com um
sorriso nos lábios, o joio do trigo, do contrário, engoliria verdades, como
mentiras e vice-versa.
Não havia pudor na
oratória, essa era a regra, aliás não havia regra. Entretanto, o dono da casa
estabelecia, sem muito critério, o tempo que cada um tinha para matar o tempo.
Quando o causo era bom, a atenção dobrava e o tempo não morria, pedia pra virar
a ampulheta, no limite da tolerância da luz elétrica: às 10 da noite. Hora em
que a prefeitura desligava o gerador de energia da cidade de 45 mil habitantes.
Mais de uma vez, alguns assuntos precisaram da ajuda de lampiões a querosene,
ou do uso de um gerador à diesel do dono da casa: conforme o palestrante, era
importante a veracidade do olho no olho, vencendo a escuridão e a morte do
tempo. Pedro Amorim gostava, por exemplo, de narrar detalhes de cirurgias
complicadas, efetuadas no Hospital Regional. O silêncio, a noite e a morte,
mesmo unidos, não conseguiam vencer o vozeirão do Pedro, relatando o que sabia
fazer como ninguém: estender o tapete da vida.
Moisés, preto velho,
autodidata, viciado em bíblia e em jornais, costumava acompanhar os encontros diários
das tais conversas, ocorridas a partir do escurecer. Poucos dias depois, a
ausência de Moisés foi sentida, justificando a explicação dada por Dr. Amado: Moisés
viajou para Salvador, foi participar da formatura de um filho, em medicina. Segundo
Moisés me informou, o filho pediu ao pai para aproveitar a viagem e fazer, na
capital, exames de catarata e reumatismo, uma vez que não havia especialistas
dessas enfermidades, aqui em nossa cidade. O primogênito de Moisés, com
certeza, seria mais um frequentador da Confraria dos Assassinos do Tempo,
na calçada do médico Arlindo Amado.
Naquela época, a rigor,
matar o tempo era uma tarefa não muito fácil. Alguns chegavam e saíam calados,
embora se sentissem com a cabeça limpa, como se o bate papo de inutilidades
funcionasse como um shampoo para limpar o cérebro. Outros vinham pela
gratuidade da socialização do ato de matar o tempo: o café, a pinguinha, o
whisky, os salgadinhos de rico, o aperto de mão, o abraço, raro, mas valorizado.
poucos só viam os participantes nos consultórios, nos escritórios chiques, nas
missas de domingo, etc. Arlindo Amado era um sujeito com pouco mais de 1,60m de
altura, branco, cabeça grande, meio desengonçado, membros maiores do que o
tronco, pernas finas, parecia um boneco gostoso equilibrista, tipo o que se
compra em feiras livres para presentear os filhos. Já o outro médico, Pedro
Amorim, assíduo frequentador da calçada da confraria, era alto, forte, corpo de
ex-jogador de futebol, competente, o mais rico do grupo, com especializações
feitas no Rio de Janeiro, pronto a responder quaisquer dúvidas dos colegas, em
seu consultório chique. Era cirurgião geral, operava toda e qualquer
enfermidade. Um faz tudo!
Pouca gente sabia, exceto Pedro e Amado, por serem médicos
e íntimos, que Moisés inventara um colírio à base de água fervida com malacacheta,
um mineral também conhecido como mica. Após coar, cuidadosamente,
ele acrescentava três gotas do sumo da planta quebra pedra, em
10 ml da solução de mica e usava três vezes ao dia, nos dois olhos. A solução,
para espanto dos médicos de Salvador, não só paralisou a catarata de um olho,
como impediu que ela se alastrasse ao outro. Aos 82 anos, Moisés ainda lia
jornal.
O longo desabafo daquela noite serviu para informar aos
demais o que os mais íntimos já sabiam, Moisés não tomava antibióticos. Era
autodidata, viciado em bíblia e em jornais, lia todo dia, geralmente pela
manhã, lia inclusive propagandas. Moisés não gostava da alopatia, não tomava
remédios fabricados em laboratórios, era adepto das plantas medicinais e de
práticas alternativas. Ao chegar em casa, a primeira coisa que fez foi colocar
o pacote com as caixas de antibióticos e anti-inflamatórios sobre a geladeira,
esquecendo as sugestões do especialista que havia sido, inclusive, professor de
Daniel.
Na semana seguinte,
depois que Pedro Amorim arranjou uma sala confortável para instalar o
consultório de Daniel, o novo pediatra de Senhor do Bonfim, Moisés voltou a
frequentar as reuniões da confraria: Apareceu taciturno, solitário, escondendo
os dentes, sério, olhar distante e andando com dificuldade, puxava de uma
perna. Segurava nas mãos, com firmeza, um pacote, contracenando com a dor. De
imediato aflorou à memória de Pedro uma frase de Hipócrates: “curar quando possível; aliviar quando
necessário; consolar sempre”.
Depois que percebeu que
a dor era insuportável e os remédios alternativos não surtiam efeito, Moisés
pediu conselhos aos amigos médicos, mostrando os antibióticos,
anti-inflamatórios e a receita do médico especialista. Se lhe fosse permitido,
mataria na memória o tempo da consulta, em Salvador, esquecendo aquele pacote,
pra sempre, sobre a geladeira. Pra sempre era tempo demais pra matar. Ouviu o
especialista, o filho e os amigos…
Três dias depois que ele tomou os remédios, o
fígado inchou e ele veio a óbito. A família ouviu as desculpas médicas,
educadamente, mas sabia que foi estupidez forçar o uso de antibióticos e
anti-inflamatórios em um corpo virgem, garantindo que voltaria a andar,
normalmente. Moisés era teimoso, exigente, voz forte, só se deixou seduzir,
porque entre os doutores da equipe médica, estava um filho querido, formados na
UFBA, sustentado com o suor e o amor que sentia por ele. Foi um forte trauma
para o filho, a confraria o perdoou, pois sabia das boas intenções.
No Nordeste, erros
médicos são tratados com frases reconfortantes: não foi o médico que errou,
foi Deus que o levou. “Feliz
serás e sábio terás sido se a morte, quando vier, não te puder tirar senão a
vida”. O legado de Moisés foi maior do que o instante da morte. Durante uma
semana, Arlindo Amado decretou luto oficial na confraria: mandava colocar, na
calçada da casa dele, as cadeiras vazias, presas por um laço de fita preta.
Durante muitos anos, o tempo não aceitou morrer naquelas poucas horas
escolhidos pelos confrades para matar o tempo. O tempo foi renomeado e tatuado
na memória dos confrades, como saudade! e saudade é o tempo que fica, não
morre!
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