Segunda-feira, 15 de junho de 2020 - 19h11
Não
tenho dúvidas de que este será o mês em que os contrários sociais se
encontrarão com mais veemência: na minha memória septuagenária não consta um
funeral coletivo, com milhares de mortos, a rivalizar-se com uma das festas
mais felizes do nordeste brasileiro, quando milhões de pessoas acendem
fogueiras, cantam a plenos pulmões, arrastam os pés pelo salão, abrem sorrisos
enormes, comem quitutes inigualáveis e olham pro céu, onde as imagens de
Antônio, João e Pedro estarão, durante todo o período junino, molduradas por emotivos
balões coloridos, embelezando o quintal de nosso Senhor Jesus Cristo.
Olha pro céu,
meu amor
Vê como ele está lindo
Olha praquele balão multicor
Como no céu vai sumindo
Difícil
ultrapassar impune, sem derramar uma única lágrima de saudade, os trinta dias
do mês, arrisco dizer, mais festivo do ano, mais até do que o mês carnavalesco,
mesmo porque, o carnaval, ao longo dos anos, nunca ocorre num mês fixo, visto
que ligado à quaresma: fevereiro e março brigam pela primazia de mês da festança
momesca.
Junho
é altaneiro e se orgulha de ser o mês em que a alegria festeira viaja feito
ondas – do interior das casas para as praças públicas: São João é o dono da
folia junina, mas carrega auxiliares de peso – Santo Antônio, no início do mês,
e São Pedro, no fim.
Ainda
que tenha que conviver com a morte, portadora momentânea de um ceifador tamanho
família, não há como apagar da memória junina, momentos felizes, vividos ao som
das orquestras populares forrozeiras que comandavam quadrilhas e forrós em
todas as escolas e praças nordestinas. Um corpo a morrer, ladeado por outro, em
que impera a vontade de continuar a viver, é como reconhecer que vida e morte
coexistem e estão em permanente dialética, ou como observar um paradoxo,
sentindo a impotência dos sentidos, por não poder interferir.
Cumprirei
o distanciamento aconselhado pelas autoridades da saúde, mas não esquecerei de
embalar os desejos, enxugando lágrimas, enquanto danço em quadrilhas
imaginárias da adolescência ou arrasto os pés, nos forrós da juventude. Nestes
momentos, por mais que seja rondoniense por opção, impossível remover todas as
lembranças nordestinas do coração.
Em
homenagem aos milhares de mortos brasileiros e estrangeiros, ignorando por
quem os sinos dobram, posso até deixar rolar, na eletrola dos
sentimentos, a música com a qual gostaria de receber amigos e familiares,
durante o velório do meu próprio funeral: do compositor Sergei Rachmaninoff,
via interpretação ao piano de Anna Federova, concerto nº2 op.18. Porém! Aqui e
agora, não deixarei de ressuscitar Luiz Gonzaga, cantando e arrastando minhas
sandálias de couro cru em torno da mesa da sala principal, sob os olhares
estupefatos de meus netos, desacostumados com a materialização festiva e
tresloucada das minhas memórias.
Nos
tempos idos da minha adolescência, sertão da Bahia, as noites juninas eram
frias, em contrapartida, os corações familiares ferviam de emoção. As férias
escolares duravam todo o mês de junho. A gente comprava fogos variados e se
reunia, à noite, na frente da casa, em volta de uma fogueira. Milho assado na
brasa era a iguaria mais apreciada. Meus pais, sentados lado a lado em cadeiras
de balanço, ficavam espiando e vigiando as brincadeiras da garotada, da casa e
da vizinhança. A felicidade batia palmas de contentamento, como se agradecendo
o significado, que a Semântica lhe
reservara, para este contexto.
Às
vezes recebíamos grupos de amigos, trajando roupas de época: camisas de
flanela, quadriculadas, calças de brim e chapéus de palha, cantando músicas
juninas, acompanhados de pífaro, violão, sanfona, pandeiro, triângulo e zabumba.
Meus pais, sorridentes, ofereciam sucos, licor de jenipapo, quentão, carne de
bode, assado na fogueira, farofa de miúdos, canjica, milho cozido e assado,
banana maranhão cozida e frita, bolo de milho, de aipim, além de mugunzá; aí
eles comiam um pouco de cada iguaria, conversavam amenidades, cantavam e dançavam
ao redor da mesa da sala, agradeciam, se abraçavam e se dirigiam a outras casas,
espalhando o vírus do amor ao próximo, aquele que apenas vivifica a existência:
A
fogueira tá queimando
Em homenagem a São João
O forró já começou
Vamos gente, rapapé nesse salão
·
O escritor William Haverly Martins é o
atual presidente da Academia Rondoniense de letras, Ciências e Artes – ARL.
Das nossas janelas víamos as janelas dos vizinhos, o muro era baixo e nossa casa foi construída no centro de três terrenos, num nível mais alto. A m
Os que se dedicam às letras, normalmente principiantes, mosqueiam a prosa de palavras "difíceis", rebuscadas no dicionário, e frases enigmáticas, pa
O valor das coisas depende de quem é
Possuía, no século passado, meu pai, na zona histórica, belo prédio barroco – que recebera dos avós, – mas, ao longo dos anos, se delapidara.Reforma
Um médico, ginecologista, instalou seu consultório no nosso bairro. Mulheres de longe, e até as que moravam perto e tinham alguma condição financeira,