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Crônica

Festas Covidninas


Festas Covidninas - Gente de Opinião

Não tenho dúvidas de que este será o mês em que os contrários sociais se encontrarão com mais veemência: na minha memória septuagenária não consta um funeral coletivo, com milhares de mortos, a rivalizar-se com uma das festas mais felizes do nordeste brasileiro, quando milhões de pessoas acendem fogueiras, cantam a plenos pulmões, arrastam os pés pelo salão, abrem sorrisos enormes, comem quitutes inigualáveis e olham pro céu, onde as imagens de Antônio, João e Pedro estarão, durante todo o período junino, molduradas por emotivos balões coloridos, embelezando o quintal de nosso Senhor Jesus Cristo.

Olha pro céu, meu amor
Vê como ele está lindo
Olha praquele balão multicor
Como no céu vai sumindo

Difícil ultrapassar impune, sem derramar uma única lágrima de saudade, os trinta dias do mês, arrisco dizer, mais festivo do ano, mais até do que o mês carnavalesco, mesmo porque, o carnaval, ao longo dos anos, nunca ocorre num mês fixo, visto que ligado à quaresma: fevereiro e março brigam pela primazia de mês da festança momesca.

Junho é altaneiro e se orgulha de ser o mês em que a alegria festeira viaja feito ondas – do interior das casas para as praças públicas: São João é o dono da folia junina, mas carrega auxiliares de peso – Santo Antônio, no início do mês, e São Pedro, no fim.

Ainda que tenha que conviver com a morte, portadora momentânea de um ceifador tamanho família, não há como apagar da memória junina, momentos felizes, vividos ao som das orquestras populares forrozeiras que comandavam quadrilhas e forrós em todas as escolas e praças nordestinas. Um corpo a morrer, ladeado por outro, em que impera a vontade de continuar a viver, é como reconhecer que vida e morte coexistem e estão em permanente dialética, ou como observar um paradoxo, sentindo a impotência dos sentidos, por não poder interferir.  


        
Cumprirei o distanciamento aconselhado pelas autoridades da saúde, mas não esquecerei de embalar os desejos, enxugando lágrimas, enquanto danço em quadrilhas imaginárias da adolescência ou arrasto os pés, nos forrós da juventude. Nestes momentos, por mais que seja rondoniense por opção, impossível remover todas as lembranças nordestinas do coração.

Em homenagem aos milhares de mortos brasileiros e estrangeiros, ignorando por quem os sinos dobram, posso até deixar rolar, na eletrola dos sentimentos, a música com a qual gostaria de receber amigos e familiares, durante o velório do meu próprio funeral: do compositor Sergei Rachmaninoff, via interpretação ao piano de Anna Federova, concerto nº2 op.18. Porém! Aqui e agora, não deixarei de ressuscitar Luiz Gonzaga, cantando e arrastando minhas sandálias de couro cru em torno da mesa da sala principal, sob os olhares estupefatos de meus netos, desacostumados com a materialização festiva e tresloucada das minhas memórias.

Nos tempos idos da minha adolescência, sertão da Bahia, as noites juninas eram frias, em contrapartida, os corações familiares ferviam de emoção. As férias escolares duravam todo o mês de junho. A gente comprava fogos variados e se reunia, à noite, na frente da casa, em volta de uma fogueira. Milho assado na brasa era a iguaria mais apreciada. Meus pais, sentados lado a lado em cadeiras de balanço, ficavam espiando e vigiando as brincadeiras da garotada, da casa e da vizinhança. A felicidade batia palmas de contentamento, como se agradecendo o significado, que a Semântica lhe reservara, para este contexto.

Às vezes recebíamos grupos de amigos, trajando roupas de época: camisas de flanela, quadriculadas, calças de brim e chapéus de palha, cantando músicas juninas, acompanhados de pífaro, violão, sanfona, pandeiro, triângulo e zabumba. Meus pais, sorridentes, ofereciam sucos, licor de jenipapo, quentão, carne de bode, assado na fogueira, farofa de miúdos, canjica, milho cozido e assado, banana maranhão cozida e frita, bolo de milho, de aipim, além de mugunzá; aí eles comiam um pouco de cada iguaria, conversavam amenidades, cantavam e dançavam ao redor da mesa da sala, agradeciam, se abraçavam e se dirigiam a outras casas, espalhando o vírus do amor ao próximo, aquele que apenas vivifica a existência:

A fogueira tá queimando
Em homenagem a São João
O forró já começou
Vamos gente, rapapé nesse salão

 

·      O escritor William Haverly Martins é o atual presidente da Academia Rondoniense de letras, Ciências e Artes – ARL. 

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