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Crônica

Muito além da viagem*


Muito além da viagem* - Gente de Opinião

Desde que aprendeu a ler, ouviu dos pais, a mãe professora: − Filho, com a leitura você terá a bagagem necessária para viajar pelo mundo e o que é mais impressionante, você não só poderá admirar paisagens, com os guias de viagens, como abrirá espaços mentais, com o mundo da fabulação dos grandes escritores. A leitura e a pesquisa internética são a base da bagagem do conhecimento, necessárias para trilhar os caminhos que despertam a curiosidade. Mundo afora.

O costume de dar livros aos filhos começava no chá de bebê: − Não me deem fraldas, quero livros infantis, coloridos. Encham o berço de meu bebê com livros, assim ele se acostuma com o cheiro do papel, com as imagens, e, de vez em quando, eu poderei ler uma historinha pra ele e, se perceber que o livro não presta, uso o papel para limpar o coco da cadelinha que nos acompanha.  Aliás, esse era outro costume da mãe, criar cães junto com os filhos. Brinquedos eletrônicos só a partir dos cinco anos.

Isso deu tão certo que os filhos de D. Lurdes Militão, ao chegarem ao ginásio, já haviam lido muitos dos autores indicados para a idade deles, imprescindível a Bolsa Amarela de Lygia Bojunga. O mais sonhador dos garotos viajou pela obra de Júlio Verne e compreendeu de onde vieram alguns filmes que alimentaram a magia do cinema e o encanto dos super-heróis. Tudo começou ou começa com a combinação das letrinhas mágicas, seguida da imaginação fértil dos escritores. Cada escritor é seguido de releitura, cada leitura acrescenta conhecimento!  Mamãe coruja gostava de repetir pra si mesma o velho preceito das artes literárias.

De vez em quando, enquanto limpava os cômodos da casa, gostava de falar sozinha, na expectativa de que algum dos filhos a ouvisse: - nem todos os que leem muito se transformam em escritores, mas ninguém consegue escrever sem ter o costume de viajar pelo mundo da leitura. A bagagem da leitura lhe acompanhará por todos os lugares e ninguém poderá rouba-la. Com a chegada da internet, dos celulares e dos computadores, as viagens online ganharam novos componentes ao vivo e a cores.

Dizem os críticos pesquisadores, que quando o bardo William Shakespeare escreveu Romeu e Julieta sequer conhecia a cidade de Verona, muito menos a casa que a indústria do turismo apresenta como a casa dos Capuleto, os pais de Julieta, filha única. O mesmo se diz de Romeu, filho único dos Montechio. As histórias das cidades italianas atravessavam a Europa pela verve dos mercadores e andarilhos trovadores, até que esbarraram na mente criativa, engenhosa e imaginativa de diversos autores, entre eles, aquele que é considerado o maior escritor de todos os tempos. O inventor do humano.

A professora Lourdes, quando o último dos cinco filhos venceu a barreira da adolescência, criou um clube de leitura familiar: cinco livros eram distribuídos para leitura e, à medida que iam sendo lidos, eram trocados. Ao término da leitura de todos os livros, ela marcava um encontro num sábado, fazia um grande jantar, dentro das suas possibilidades, e discutia com os filhos, os amigos dos filhos e o marido, mascate, o conteúdo de cada livro. Muitas mães, moradoras de Campo Formoso, sertão da Bahia, a invejavam.

Com o avançar da idade, os filhos seguiam a lógica familiar, mudavam de cidade, se casavam, ingressavam na Universidade. Um morreu, antes dos vinte, acidente de moto. Dos cinco, o mais novo, permaneceu em Campo Formoso. Fez faculdade de História, uma das poucas que existia em sua cidade, aprendeu a falar inglês e se dedicou a dar aulas, nos moldes do que fazia a própria mãe. Descrevia inúmeras cidades sem nunca as ter conhecido. Adepto do gênero “Viajando pelo mundo, através dos Livros”, exercia a vez de protagonista home office. 

O pesquisador/professor estudava os lugares mais interessantes do mundo, fazia comentários e críticas aos monumentos históricos, indicava sites de pesquisa, sem sair da sua pequena cidade, nem deixar o convívio das pessoas que mais amava.

Depois de algum tempo, com o avanço do conhecimento, Marques Militão se dedicou a escrever livros, cada livro aprofundava o visual de grandes cidades. Conhecer Paris é uma coisa, mas vê-la pela ótica de Ernest Hemingway, em Paris É Uma Festa, é instigante. Que graça tem viajar a Paris, sem saber quem foi o Marquês de Sade, o Corcunda de Notre Dame, a Madame Bovary, quem foram Os Miseráveis de Victor Hugo? de que adiantava subir a Torre Eiffel sem sentir o rumorejar do cérebro com o Existencialismo de Sartre e Simone de Beauvoir? A França não é a mesma sem O Pequeno Príncipe de Antoine de Saint Exupéry, sem Voltaire, sem Napoleão, sem Descartes, sem Molière, sem Alexandre Dumas, enfim não basta olhar a Bastilha ou o Louvre sem alimentar, para o resto da vida, o vírus do conhecimento e da admiração! A vacina contra a asnice, feita com a matéria prima da instrução, era sempre bem-vinda.

E assim Marques Militão ia descrevendo as grandes cidades, acompanhadas de seus grandes personagens e do significado dos monumentos. Londres, Brasília, Nova York, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Lisboa etc. ganhavam um guia de viagens pra lá de interessante. Já publicou 15 livros, para orgulho da mamãe coruja. Casado, pai de um filho de 9 anos, alfabetizado em dois idiomas.

Certo dia, de surpresa, a esposa o encurralou na alcova, onde já fizeram inúmeras viagens inesquecíveis, entre gritinhos de gozo, compondo a poesia do corpo: − Marques, meu amor, estou cansada desse faz de conta, queria viajar de verdade, subir num avião, tomar um taxi, transar num hotel, conhecer um museu ao vivo, acompanhar pessoas apressadas pelas ruas de Nova York, tomar banho nas praias de Miami, assistir um musical na Broadway, visitar a Disney e os Estúdios de Hollywood, subir a Torre Eiffel, atravessar o rio Danúbio, assistir uma missa na Notre Dame, presenciar uma partida de futebol entre Real Madri e Barcelona, conhecer presencialmente Buda e Peste. E Ancara, e Istambul e o estreito de Bósforo. Queria sentir o prazer enchendo meus olhos e me descendo pela face; queria descobrir se gozar num quarto de hotel francês é o mesmo que gozar na nossa velha cama, mesmo sabendo que o jorro quente de seu esperma me completa por inteira, qualquer que seja o cenário. Meu amor, compreenda a curiosidade de uma mulher que o ama integralmente.

Tomásio, o filhinho de Dora e Marques, apavorado com o discurso da mãe, em voz alta, de supetão, adentrou o quarto do casal, pegou a mãe pela mão, fez a cara mais séria que a infância permitia, olhos nos olhos, com voz aguda: − Mamãe, você ainda não pode viajar porque não tem bagagem, você vai odiar as ruas antigas e o povo de Paris, você ainda nem leu os livros do papai!... Papai tomou um susto, a curiosidade estabeleceu contato com o prazer, queria saber de onde o garoto tirara o ódio ao povo de Paris. Da internet, ora bolas. Dizem que é o pior povo da Europa, o mais ‘metido à besta’ que existe. São boçais que nem os ingleses. Boçais? E o pai nem sabia que o filho conhecia essa palavra.

O pai, orgulhoso, mas estupefato, com os olhos cheios de lágrimas, acompanhou o filho até o quarto, fechou a janela, impedindo o vice-versa das vistas, beijou o rebento e pediu delicadamente que ele fosse dormir; apagou a luz e puxou a cortina escura, como se estivesse iniciando o círculo da pré-adolescência. Amanhã será outro dia!

No silêncio da noite, pelas ondas do nada, perguntou online a chorar: o amor, o amor onde está? o amor está aqui, perto-perto de nós, está arrumando a bagagem, para uma viagem que virá.

De mãos dadas atravessaram o Arco do Triunfo; ela não viu quase nada, mas ele se encantou com Napoleão, montado em seu cavalo branco, puxando o desfile patriótico das tropas que libertaram a França, no fim da 2ª Guerra Mundial. Napoleão na 2ª guerra? seria ótimo. Marques inclinou a cabeça em respeito aos soldados mortos nas grandes guerras, recebendo de volta uma piscada de olhos do General De Gaulle.

De repente, uma multidão de turistas invadiu as ruas de Paris. Mas não eram só turistas, havia milhares de refugiados africanos, asiáticos, gente fugindo da guerra na Síria, sobreviventes da fome. Marques percebeu que Paris perdera o seu glamour, até para se tomar um café havia fila. No final da noite, exaustos das caminhadas sobre ruas históricas de pedras, após um banho frio de desejos, se jogaram no colchão, sem se preocuparem com detalhes estéticos do quarto, queriam apenas dormir. Dora misturou o cansaço com as sábias ponderações do pequeno Tomásio. Nem chegou e já pensava em voltar: Como estará meu menino querido na companhia da vovó? Campo Formoso, meu campo formoso!!! Nas asas do pensamento, olhos fixos no horizonte, posso imaginar, sentir, ver tuas serras e colinas, o verde esmeralda de tuas paisagens ao vento.

*Inspirado em nanoconto de Viriato Moura:  Por falta de bagagem, não sabia viajar. 

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