Domingo, 18 de agosto de 2024 - 11h25
Em 1968, quando era o todo-poderoso Ministro da Fazenda, do governo
Costa e Silva, Delfim Netto pediu o confisco dos meus bens e a abertura de um Inquérito
Policial Militar (IPM) contra mim, por entender que os honorários advocatícios
que eu recebera de um determinado cliente, cuja defesa estava fazendo com
vitórias em primeira instância, eram produto de um sonegador, e pretendeu - foi
manchete dos jornais daquela época -, que houvesse o confisco de todos os meus
bens. Isso em pleno Ato Institucional nº 5, ou seja, 2 meses depois, em 12 de
fevereiro de 1969. Era um período em que das pessoas que respondiam aos IPMs,
muitos não voltavam. Foi assim com o jornalista Vladimir Herzog, que morreu
durante um IPM.
Felizmente, quem
mandava iniciar o inquérito era o ministro da Justiça, que fora meu professor
na Faculdade de Direito da USP, o Ministro Gama e Silva. Ele entendeu que os
honorários advocatícios não tinham nenhuma vinculação com a vida de quem
defendia, até porque eu estava ganhando a questão na justiça. O Ministro Gama e
Silva nunca mandou intimar-me. Eu mesmo disse aos jornais, quando veio a
notícia, que o Ministro poderia me investigar, pois eu não tinha nada a
esconder. Vale ressaltar que os honorários só foram descobertos porque eu os
declarara, numa época em que poucos faziam a declaração do que ganhavam na
advocacia, pelo menos a declaraça o completa.
Com o passar do
tempo, Delfim e eu passamos a manter relações. Ele mesmo disse que a briga não
era pessoal, mas técnica. Ficamos amigos. Em 1986, fundamos a Academia
Internacional de Direito e Economia. Entre os economistas, estavam ele, Roberto
Campos, Ernane Galvêas, Mário Henrique Simonsen, Carlos Langoni, Afonso Celso
Pastore e, entre os juristas, Manoel Gonçalves, Celso Bastos, Moreira Alves,
Oscar Correia e outros. Fui seu primeiro presidente.
A nossa amizade
cresceu. Em 1986/1987, depois de uma audiência pública feita na Assembleia
Nacional Constituinte - ele presidia a subcomissão de reforma da ordem
econômica -, chegou a declarar ao Estado de São Paulo que eu seria um excelente
candidato a prefeito da cidade.
Escrevemos quatro
livros juntos e demos algumas palestras. Sempre tive uma grande admiração pelo
Delfim, porque ele tinha precisão gráfica para definir situações com frases que
eram cirúrgicas para aquele momento. Era um esplêndido economista, um cidadão
absolutamente preciso e pragmático no que fazia. Como cidadão, apesar de ter participado
do governo militar, sempre manteve contato com todas as áreas acadêmicas e
políticas. Foi deputado e foi titular da FEA, na Universidade de São Paulo.
Nosso último encontro foi durante uma palestra que demos juntos, há dois ou
três anos, na Fecomercio.
Nunca ninguém
entendeu como é que nos tornamos bons amigos depois daquilo que houve em 1968.
José Renato Nalini chegou a dizer que o meu baú de ressentimentos não tem
fundos, por isso é que a amizade fora possível.
Estou convicto de que
o Brasil perdeu um grande economista.
Hoje, o que está
faltando no país são bons economistas. Nomes reconhecidos no exterior, grandes
expressões, economistas não da área privada, mas sim atuantes no poder público.
Roberto Campos Neto é excelente presidente do Banco Central. Mas nós não
estamos vendo mais expressões como aquelas que, num determinado momento,
chegaram a produzir o Plano Real, a enfrentar a grande crise da década de 1980,
como fez Delfim, “sentando” sobre a inflação quando ela chegou a 200% ao ano,
após permitir um crescimento exponencial do Brasil como na década de 1970, que
nos levou, de um país desconhecido no cenário internacional, a ser uma das potências
mundiais na economia.
Mesmo no período
inflacionário, o Brasil nunca teve uma “hiperinflação”, mas apenas uma “super
inflação” incapaz de desorganizar a economia.
Sinto muito a morte
do Delfim. Conversei com Galvêas, pouco antes de ele falecer (aos 99 anos),
sobre a importância de Delfim Netto para este país. Ele também foi companheiro
do Delfim e fundador da Academia Internacional de Direito e Economia, criada
para mantermos um diálogo entre os economistas e os juristas, de tal modo que
os juristas entendessem as questões econômicas e os economistas não se
aborrecessem com as questões jurídicas.
De fato, um
economista como Delfim fará falta ao Brasil, porque mesmo nos últimos tempos,
já doente - ele sofria de gota há muitos anos -, ainda quando consultado, tinha
aquele humor cirúrgico, que definia situações com brilhantismo único.
Tenho a impressão de
que o Brasil está ficando sem suas grandes inteligências, que precisam ser
renovadas, mas para isso precisamos que todos pensem menos ideologicamente, e
mais pragmaticamente, procurando olhar realmente para a ciência, a cultura, a educação,
para o crescimento do país, e não apenas alimentando-se de ódios passados, não
permitindo que o Brasil cresça. Que Deus o receba de braços abertos, é o que eu
desejo como seu velho amigo.
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