Segunda-feira, 4 de julho de 2022 - 20h46
Acordei com os sons dos periquitos e papagaios na ingazeira que recobria quase todo o telhado da nossa casa.
Ninguém conseguia dormir depois das cinco horas da manhã, nem as crianças que, quando havia silêncio, dormiam mansamente ao som das corredeiras do Madeira. Eu tinha sete anos de idade quando meu pai em seu cavalo me levou para conhecer a Vila.
Seguimos pelo varadouro que em poucos anos se tornaria a estrada da Vila Murtinho. Chegamos ao bar do José Piraíba, o primeiro estabelecimento comercial da futura Nova Mamoré. Eu, sempre faceiro, montado na parte dianteira da sela do animal, achava que meu pai era muito maior que qualquer castanheira centenária que existia em todo nosso caminho.
Meu pai me colocou no chão. Eu fiquei olhando toda sua agilidade ao descer como um imperador do cavalo e chicoteá-lo para que pastasse nas redondezas do bar. Mesmo com as chicotadas, o animal permanecia insistentemente no terreiro e volta e meia caminhava em direção à porta do estabelecimento comercial. Muito tempo depois descobri o porquê: é que meu pai dava um copo de cachaça para o animal todas as vezes que chegava em um bar.
Naquela manhã chuvosa de março, o frio me fazia encolher sentado em um banco vendo meu pai beber cachaça, gesticulando muito e falando alto. Ele percebeu que eu estava com muito frio e olhando me disse: “toma um copo de cachaça que o frio passa”.
Vendo meu pai beber todos os dias, achei que ele estava com razão e pedi o copo de cachaça.
Ele não hesitou e pediu que o dono do bar me servisse a bebida. Me levantei do banco fui ao balcão bem mais alto do que eu, tremendo muito, peguei o copo bem cheio e o levei à boca. Não consegui tomar um único gole, o líquido queimou meus lábios e o cheiro era insuportável, olhei para o meu pai e ele disse: “bebe, cachaça é coisa de homem”. Com lágrimas nos olhos, levei novamente o copo à boca e tomei toda cachaça que tinha em seu interior.
Meu pai sorriu para mim, e eu, quase paralisado com o copo ainda na mão, também sorri de volta, e o achei mais bonito ainda com seu bigode ruivo e os dentes amarelados de mascar fumo. Desse momento em diante lembro vagamente de pouca coisa.
Acordei já em Vila Murtinho deitado sobre meu próprio vômito, em minha cama.
Minha mãe ao meu lado não sabia o que tinha me acontecido. Chorando e com um pano molhado enxugando o meu vômito pensou que eu estivesse com hepatite. Eu nunca tive coragem de lhe falar a verdade, pois achava que naquele dia eu havia me tornado homem. Até hoje toda vez que tomo a primeira dose de cachaça, quando vou beber, lembro da frase do meu pai: “bebe, cachaça é coisa de homem”.
Durante todo o dia não consegui comer nada.
Minha mãe, muito preocupada preparou, já no anoitecer, um mingau de puba que consegui comer algumas colheradas que ela pacientemente colocava em minha boca. Dormi novamente e sonhei que o Rio Madeira era uma imensa corredeira de cachaça.
Vi meu pai se afogando e me implorando para salvá-lo.
Acordei com ele me chamando para acompanhá-lo novamente ao povoado de Vila Nova. Montei em seu cavalo e pouco tempo depois estávamos alojados no interior do bar do
Piraíba. Agora, éramos dois homens sentados um de frente para o outro, dois copos cheios de cachaça e um terceiro vazio, ingerido há pouco tempo pelo cavalo que nos observava na entrada do bar, aguardando outra dose.
Aquela cena se repetiria centenas de vezes. Em pouco
tempo eu conhecia todos os bares, puteiros e botequins da região, inclusive da Colônia Agrícola do IATA. Aos dez anos de idade eu já sabia distinguir os sabores, cheiros e cores das cachaças,
conhaques, cervejas e demais bebidas alcoólicas que pudessem existir em meu pequeno mundo de criança.
Cresci vendo meu pai beber todos os dias. Nesta lida, o acompanhei até o dia que o encontrei caído sobre seu próprio vômito e seu cavalo ao seu lado com os olhos enviesados de bêbado. Nesse dia, em que o levamos para enterrá-lo embaixo de uma imensa mangueira, voltei para casa montado em seu cavalo e tomei todas as bebidas que encontrei no povoado.
A maior e melhor lembrança do meu pai eram as nossas viagens para Vila Nova e a volta quando os três bêbados, chegávamos em casa onde mamãe nos aguardava com os olhos fixos no caminho. Nos meus quase cinquenta anos de idade, poucos foram os momentos em que me senti sóbrio. Nesses momentos a dor, a solidão e o abandono eram insuportáveis. Imediatamente, voltava para o meu mundo de criança onde revia meu pai com seu bigode ruivo e seus dentes amarelados de mascar fumo.
(*) Do livro “Causos e Crônicas do Berço do Madeira”. Também autor de “Trem das Almas”.
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