Sábado, 4 de janeiro de 2025 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Crônica

O Porrete das bicheiras


O Porrete das bicheiras - Gente de Opinião

A famosa frase de Euclides da Cunha, O sertanejo é, antes de tudo, um forte, ao longo do tempo, teve seu sentido ampliado, por outros escritores: O nordestino é, antes de tudo, um forte. A princípio, Euclides mirava como fortes os tabaréus que seguiam Conselheiro, O Peregrino, alcunha do cearense Antônio Vicente Mendes Maciel. Fortes por enfrentarem as adversidades na construção do arraial de Belo Monte (Canudos), em 1893, e por continuarem divulgando, apesar da Proclamação da República, no sertão nordestino, os ideais monarquistas. Fortes por suportarem a guerra contra a força policial da Bahia e o exército brasileiro em 1896/97, assombrando a capital da jovem república, com a força messiânica dos sertanejos fanáticos.

Antônio Conselheiro, além de santo, advogado dos mais necessitados, falava a língua do sertanejo, promesseiro de marca maior, estilo político. O exército varreu do mapa a pequena Canudos, dilacerando corpos com a força dos seus canhões, contudo a figura de Conselheiro continua vagando pelo campo de batalha, prometendo, com o silêncio tagarela da roupa branca e barba negra, um amanhã melhor, quiçá no céu.

A avó de Avelina, Maria das Dores, seguidora de Conselheiro, morreu no campo da batalha das planícies de Canudos, fazia parte do grupo de rezadeiras que protegiam o corpo do santo, com rezas poderosas e ramos de arruda. Conselheiro vestia-se com um chambre branco, não cortava o cabelo nem a barba. Santo estrategista, destemido, de arma na mão, pronto a defender seus fiéis seguidores.

Anos mais tarde, no limiar e meados do século XX, sob a visão dos demais brasileiros, os nordestinos continuaram portando essa pseudo máscara sobre-humana, diante das adversidades.  Assumiam a condição de fortes porque só eles suportavam, durante semanas, o lombo de um pau-de-arara com destino a São Paulo. Em tempo de seca, não era fácil sair do Nordeste: numa época, foram pro Norte, via rios, ajudar na construção da EFMM e na extração do ouro branco; em outra, viraram soldados da borracha, financiados pelo Tio Sam, durante a 2ª Grande Guerra. Afora isso era ir de caminhão, ou a pé, no estilo Vidas Secas, de Graciliano Ramos, até chegar na estação da Estrada de Ferro que passava em Juazeiro, na Bahia. Daí até São Paulo, via Minas Gerais. Ao fim da sofrida caminhada, sobrava pouco, ou nada. Hoje, o progresso melhorou os caminhos do Nordeste para o Sul/Sudeste, os acessos estão, relativamente, mais fáceis. Às vezes são os do Sul/Sudeste que migram pro Norte/Nordeste. Entretanto, se, na jornada pela vida, a morte prematura for vencida, um dia! o retirante voltará pra sua terra, nem que seja pra mostrar as sobras da família retirante: – Oi eu aqui de novo, xaxado! Louvado Seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Para sempre seja louvado!

Missão impossível: arrancar o Nordeste de dentro do retirante. Não importa o destino, o nativismo será sempre uma comovente companhia. Na saída, o cérebro entra no modo sobrevivência e vai, o desejo de comida e água fartas vão, mas o coração fica. O amor é mais forte do que a razão e envolve todos os encantos e cantos de cada letra da palavra saudade.

“Inté mesmo a asa branca

Bateu asas do sertão

Entonce eu disse: Adeus, Rosinha

Guarda contigo meu coração

Entonce eu disse: Adeus, Rosinha

Guarda contigo meu coração”

 

Pais de santo, padres e pastores de todos os naipes, filhos da transcendência, ensinam como ter fé e usufruir dos santos católicos, dos orixás africanos e dos deuses em geral.

A condição de rezadeira, defendida na negritude de D. Avelina, ao som dos atabaques, era conhecida por quase todos os habitantes das pequenas cidades sertanejas por onde atuava. Muitos a temiam, evitavam cruzar a rua com ela, principalmente os crentes, diziam que ela tinha parte com o diabo. De fato, ela era poderosa, rezadeira com o dom hipocrático de amainar a dor. Andava na boca dos necessitados, igualmente procurada por fazendeiros, para curar bicheiras de gado. O povo dizia que Vó Avelina tinha poderes sobre a mosca varejeira.

Todo ano, em temporada de varejeiras, aparecia um depósito razoável, na conta que D. Avelina abrira na Caixa Econômica de Senhor do Bonfim, embora residisse oficialmente em uma roça de Capim Grosso. Ela sabia o porquê dos misteriosos depósitos: Fazendeiros de Feira de Santana recorriam a ela toda vez que as moscas atacavam o rebanho. O que mais impressionava: eles mandavam um vaqueiro até Capim Grosso, mais de 100km distante da fazenda, para narrarem as características das vacas doentes e a localização da fazenda. A velha Avelina preparava um altar, com galhos de bambu, espadas-de-São-Jorge, cansanção e ramos de arruda, além de um velho quadro, reproduzindo a figura de Antônio Conselheiro, medindo 50 X 70 cm, que ela guardara, como lembrança de Canudos. Dizia pra todo mundo que aquele retrato ela recebera como herança de sua avó, rezadeira oficial de Conselheiro.

Língua afiada e concatenada com o misterioso, rezava com muita convicção, para depois se dirigir ao vaqueiro e informar: - pode voltar pra sua fazenda, diga ao seu patrão que a bicheira caiu e lembre a ele o número da minha conta. Um ou outro vaqueiro duvidava da alvíssara, só abria a cara de estupefação, após ver com os próprios olhos. Durante anos, a fama correu por todas as cidades do entorno, a poupança rendia os juros da propaganda boca a boca. O dinheiro era suficiente pra ela melhorar e manter casas em Capim Grosso, Senhor do Bonfim e Juazeiro. Gostava de ajudar outras pessoas, passando a imagem de benfeitora das cidades do polígono das secas. Vivia bem! Ademais, mesmo sendo considerada, pela igreja católica, Mãe de Santo, pagava dízimos ao padre Válter da paróquia de Senhor do Bonfim e assistia missas, quando podia. Fazia questão de comungar, porém só recebia a hóstia se fosse das mãos do padre paroquiano.  Avelina, segundo os que a conheciam, morreu com mais de cem anos de idade. Na lápide de uma tumba de mármore branco, no cemitério de Feira de Santana, um fazendeiro de Riachão do Jacuípe mandou colocar uma foto de Avelina, seguida da alcunha pela qual ela gostava de ser conhecida: O Porrete das Bicheiras!

Neste país, afeito a polarizações, até o poder das rezadeiras está entre o céu e o inferno. Não se sabe até hoje se o poder de Avelina vinha de Deus ou de Satanás. Naquela época, não havia celulares e muito menos fakenews; havia mentiras, grandes e pequenas, como as de primeiro de abril, porque elas são inerentes, todavia ninguém era besta de duvidar das forças obscuras das rezadeiras, muito menos dos fantasmas, essencialmente daquele que aparecia no beco do colégio das freiras, em Senhor do Bonfim. Vestia-se como freira, mas quando a pessoa chegava perto a batina flutuava no ar, desnudando a aparição: o fantasma não tinha corpo nem rosto. Uuuuuai!!! Valei-me minha nossa senhora…

 D. Avelina era poderosa, temida! Sabia como ninguém romper limites, superar obstáculos e ir além do humano. Enquanto viva, rendeu homenagens à mama África e à herança cristã, feito gilete. Guardiã da memória, serviu como personagem da cultura popular.

Quebranto e outros males menores não eram páreo para o raminho de arruda de Tia Avelina: ela colocava o doente de joelhos à sua frente, de tal forma que a pessoa pudesse enxergar o retrato de Antônio Conselheiro, com sua enorme barba preta e o olhar incisivo. Pronunciava, em voz baixa, palavras incompreensíveis, enquanto balançava o raminho de arruda no entorno da pessoa enferma e o mal partia, para as profundezas do inferno. Dona do mundo misterioso, só não sabia fazer chover, mas conhecia, na intimidade, todos os hinos a S. José, o padroeiro das chuvas no sertão.

Meu divino São José
Aqui estou em vossos pés

Nos dê chuva com abundância
Meu Jesus de Nazaré

Tia Avelina, Vó Avelina ou D. Avelina foi vencida pela morte, deixando marcas de alívio, nos sofredores que buscaram ajuda, para superar seus males: Curou minha enxaqueca; salvou meu filho, expulsou bicheira de boi, ignorando a distância. Boas e más lembranças inté hoje circulam pela cabeça dos ditos fortes, no polígono das secas, contudo o martírio das mortes violentas, nos campos de Canudos, virou refém da narrativa histórica, está tatuado na memória, renova lágrimas que o tempo não pode enxugar. 

Gente de OpiniãoSábado, 4 de janeiro de 2025 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Confraria dos Assassinos do Tempo

Confraria dos Assassinos do Tempo

Matar o tempo, ocupar-se com algo insignificante, por um determinado período, talvez seja tarefa aparentemente fácil. Contudo o tempo cronológico e

O carvão

O carvão

Um homem que frequentava regularmente reuniões com os seus amigos, sem nenhum aviso, deixou de participar das suas atividades.Depois de algumas sem

E por falar em Natal

E por falar em Natal

Como seria o Natal de Jesus, se Ele tivesse a oportunidade de comemorar? Suas ações descritas na Bíblia nos dão uma boa pista. Por exemplo: - Aceita

O Regatão

O Regatão

A Amazônia comporta a maior bacia hidrográfica do mundo. Seus rios, os principais e os secundários, servem como “estradas aquáticas” pelos quais deslo

Gente de Opinião Sábado, 4 de janeiro de 2025 | Porto Velho (RO)