Terça-feira, 23 de junho de 2020 - 11h35
Recordar
é o verbo que mais mistura neurônios e sinapses com artérias e veias, como se
os interligados cérebro e coração vibrassem juntos no instante de acionar o
botão da memória, estendendo suas influências aos sentidos do corpo, fazendo
tremer um músculo, uma pálpebra e, na maioria das vezes, desenrolando um tapete
macio, para que uma ou várias lágrimas desfilem rugas abaixo, entremeadas por
um tímido sorriso ou contrações faciais de choro.
Na concepção dos pseudocientistas, como eu, é o coração que
manda recados ao cérebro, pressionando a vida com arritmias conexas com as boas
ou más lembranças. O pulsar forte do coração faz parecer ser dele a ação de
recordar para viver ou reviver, mas a gente sabe que o cérebro é a placa mãe
que comanda as inversões do olhar, forçando a volta ao passado, glorioso ou não, ao menos para apontar quais caminhos
não deveriam ser escolhidos, na difícil
travessia da existência.
É
agradável recordar bons momentos, relembrar velhos mestres, boas amizades. Histórias
da adolescência são as mais instigantes, pois que inseridas no período mágico
do ginásio, quando as risadas eram mais francas, as amizades mais sinceras, as
palavras mais verdadeiras, os folguedos mais animados e as travessuras!
Inesquecíveis!!! Muito se perdeu no percurso, daí porque é importante registrar
o que ainda está no córtex cerebral, ratificando parte da história da minha
vida.
Passei
cinco anos no Ginásio Marista Sagrado Coração de Jesus, na cidade de Senhor do
Bonfim-BA, contando com o curso de admissão ao ginásio, entrei com dez anos. Vivi
histórias incríveis, conheci professores inesquecíveis, o mais marcante deles
era português, mas formou-se em matemática na França, chamado pelos colegas de irmão
Oliveira, mas alcunhado, carinhosamente, por todos os alunos como irmão
Bolinha, devido ao avantajado do corpo e da cabeça redonda, quase careca.
Branco avermelhado de sol, devia ter 1,80 m de altura por 1,00 m de largura de
tão gordo que era. Um homem de bem com a vida, não lembro um único dia em que o
vi de mau humor. O apelido não o desgostou, acabou entranhado no corpo e na
mente, ele mesmo se reconhecia no espelho mais como bolinha do que como
Oliveira.
Irmão
Bolinha era o responsável pelo pomar, granja, horta, pocilga, colmeia, algumas
cabeças de gado leiteiro e pela manutenção da quadra e dos dois campos de
futebol, ambos gramados, sendo um oficial e outro menor para os alunos mais
jovens. Para tanto, comandava alguns serviçais e alunos internos.
Excelente
professor, considerado um gênio da matemática, mas o que mais ele gostava de
fazer era inventar máquinas, modificar motores para irrigação, consertar os
carros do ginásio. A máquina para trançar arame para as cercas da granja e da
pocilga, ele a inventou num piscar de olhos.
Considerado
pelo diretor como a alegria da garotada, era o responsável pelos apetrechos dos
esportes, bolas, redes, raquetes, tudo referente a esportes ou a autorização
para, durante o recreio, frequentar o pomar, era ele que dava, não sem antes limitar
a quantidade de garotos e recomendar cuidado ao subir em árvores, além de pedir
para que conservassem a farda sempre limpa, tarefa das mais difíceis – calça
curta ou longa, com suspensórios ou cinto, confeccionada em brim cáqui e camisa
branca de tricoline com o escudo do ginásio bordado no bolso, além de sapatos e
meias pretos.
O
recreio era de cinquenta minutos, somados aos cerca de dez minutos para
formação das filas, totalizava uma hora. Quem trazia lanche ia pro refeitório,
muitos preferiam os esportes de quadra ou o campinho de futebol, os nerds ou os
vocacionados para a vida religiosa iam para a biblioteca ou pra capela, e a
maioria se contentava em passar uns vinte minutos no pomar, com direito a
consumir pedaços de favo de mel de abelha italiana, fornecidos pelo próprio
irmão Bolinha.
O
apito forte significava que tínhamos que correr para o pátio, lavar as mãos e
entrar na fila para voltar às salas. Quem quisesse gritar que gritasse, porque
depois que estivéssemos dentro da sala, tínhamos que permanecer em silêncio
quase total. Éramos instruídos a gritar, como forma de deixar do lado de fora o
excesso de energia.
Se não
me falha a memória, éramos uns duzentos e cinquenta alunos, todos do sexo
masculino, distribuídos em seis salas no térreo, onde havia também sala pra
banca de estudos (período da tarde), sala pra trabalhos manuais, a capela, o
auditório, cozinha, refeitório e bebedouro. Um imenso pátio, com cerca de 4 m
de largura, circulava toda a área interna retangular do prédio, inclusive a
quadra de esportes, a céu aberto. O andar de cima estava reservado aos apartamentos
dos irmãos e ao dormitório dos internos. O ginásio estava erguido numa área imensa,
quase como se fosse um sítio, algo em torno de 300 m de frente por 3.000 m de
fundo.
No
pomar havia uma grande variedade de frutas. Em qualquer época do ano havia
fruteiras produzindo. Irmão Bolinha disponibilizava algumas escadas, feitas por
ele, para que os alunos pudessem trepar nas árvores mais altas, principalmente
nos vários tipos de mangueiras, um ou outro acidente era inevitável, nada que
inviabilizasse a prática ou merecesse a repreensão dos pais.
Foram muitos
momentos marcantes, o pior castigo era ler um texto bíblico em latim para todos
os colegas; a maior euforia ficava por conta dos campeonatos entre as salas: vôlei,
basquete e futebol de campo e salão.
Não me
lembro da quantidade de missas que assisti, nem do volume das hóstias
consumidas, sei que davam pra erguer uma ponte entre o céu e a terra,
infelizmente o místico/metafórico trigo não forneceu uma liga forte, a ponte
caiu quando ingressei na universidade e tive acesso às discussões dos Concílios
de Nicéia, às ideias de Bertrand Russel, Marx, Nietsche e tantos outros, virei ateu.
Ainda
havia, no ginásio, a banda de músicas, a fanfarra, o coral, as feiras culturais
e de trabalhos manuais, as demonstrações de diálogos em francês, latim e grego,
a mexer com o emocional dos alunos, mas nada foi mais forte, em se tratando de
emoção, do que o dia em que o irmão Bolinha teve um infarto fulminante, em
plena atividade, entre as árvores e os animais, dos quais tratava com tanto
gosto e carinho. Foi uma espécie de golpe baixo da divindade, afinal era ele
quem melhor cuidava das crianças, a verdadeira incorporação de Marcellin Champagnat, padre francês que fundou a congregação dos Irmãos
Maristas: “Que haja entre vocês um só coração e um só espírito!”
O
corpo foi velado na capela por 24 horas, durante as quais foram rezados terços
e missas, com a presença dos padres e bispo da cidade, além das autoridades
municipais e praticamente todos os familiares dos alunos.
Difícil
encontrar um aluno que não estivesse com o semblante triste, era como se
estivéssemos perdendo um membro da família, um paizão que nos recebia sempre
com um sorriso nos lábios, um homem santo que pronunciava a palavra “não” e a
garotada entendia, como se fosse um “sim”.
Ninguém
o contestava, era dele a solução de toda e qualquer equação, principalmente as
do relacionamento humano, como se vocábulos e números estivessem no mesmo
patamar. Foi dele a última palavra, evaporada das flores que circulavam a sua
face tranquila, no silêncio do ataúde, cujos significados místico e mítico
penetraram e permanecem até hoje, no interior de cada um dos seus pupilos.
Devo
ao irmão Bolinha a expressão pela qual os amigos e confrades me caracterizam
a existência: “William é o ateu mais cristão que conheço”!!!
· William
Haverly Martins é o atual presidente da Academia Rondoniense de Letras,
Ciências e Artes - ARL
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