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Lavando as mãos


Gen Marco Aurélio Vieira  - Gente de Opinião
Gen Marco Aurélio Vieira

“Não há governo se a lei não é obedecida, mas não há liberdade se essa obediência combate sempre a nossa vontade e, ainda menos, se revolta a razão. Cumpre, pois, que as instituições sejam tais, que a razão as possa seguir, ou pelo menos tolerar, e que o interesse particular possa sofrê-las.”

José Bonifácio de Andrada e Silva – Patriarca da Independência do Brasil, 1824

Estima-se o ano de 30 d.C., na celebração da Páscoa, quando da peregrinação anual dos judeus em memória da libertação do Egito, que Jesus de Nazaré chegou à Jerusalém, acompanhado de um grupo que fazia algum tempo testemunhava suas pregações e feitos a extraordinários. O Evangelho de Mateus descreve Jesus recepcionado por uma entusiasmada multidão, manifestação provavelmente organizada com antecedência por aqueles discípulos, que buscaram encenar a aparição na cidade do Messias profetizado por Zacarias.

Naqueles tempos, os doutrinadores da fé e os contestadores dos poderes seculares eram ameaças reais, tanto para os sacerdotes judeus como às tropas romanas de ocupação. Acusado de alta traição e instigação à revolta, Jesus foi feito prisioneiro e levado à presença de Pôncio Pilatos, prefeito de Jerusalém, a quem cabia julgá-lo.

Pilatos hesitou na hora de anunciar seu veredicto de condenação, inquirindo então a multidão, que com grande algazarra clamou pela crucificação de Jesus. Pilatos cedeu às pressões dos sacerdotes judeus e do povo exaltado: seja crucificado! Segundo Mateus, Pilatos em seguida mandou trazer água e lavou as mãos diante da multidão, dizendo: “Estou inocente deste sangue. Isso é convosco.”. Na consciência coletiva, “Lavo as minhas mãos” – sentença que literalmente não foi dita - ficou consagrada como o subterfúgio para alguém não se responsabilizar e nem ter nada a ver com alguma coisa.

Faz dois milênios que Pilatos escolheu “lavar as mãos”, em vez de julgar. As circunstâncias de sua decisão criminosa nos alertam sobre as consequências de fugir da responsabilidade de cumprir-se a lei, e da falsidade dos juízos ditos “democráticos”, simplesmente porque fruto da vontade da maioria, ou da aplicação fria da lei.

A metáfora é válida para o Presidente da República, o Congresso, o Superior Tribunal Militar, as Forças Armadas, A OAB, os operadores do Direito, a CNBB, a sociedade brasileira dos homens de bem: todos escolheram “lavar as mãos” para os últimos absurdos jurídicos acontecidos no País. Inquéritos sem transparência ou fim; condenações sem crimes prescritos; indiciamentos por cogitação de delito; prisões baseadas em presunções; penas desproporcionais aos crimes cometidos; distinção de tratamento de agentes por viés ideológico; censura com base em invasão de privacidade; e sanções judiciais fruto de conjecturas são algumas das barbaridades jurídicas cometidas por decisões monocráticas  no STF, com a cumplicidade surda e muda não só dos demais integrantes da Corte, mas também da imprensa, da Academia e de toda a classe intelectual. Aparentemente, a ojeriza ao ex-Presidente Bolsonaro e aos “infames bolsonaristas” justificam as injustiças, perversidades e irresponsabilidades na “defesa da democracia”. Entretanto, esses vingadores de ocasião não perceberam – ou não querem perceber – os danos atuais e futuros (alguns irreversíveis) que a nossa democracia está sofrendo com a aceitação covarde, e mesmo conivente, de tais atos.

Convém lembrar que não se está discutindo sobre réus ou culpas. Questiona-se na verdade a omissão da sociedade e a falta de entendimento da responsabilidade dos agentes públicos – assim como a indesculpável tendenciosidade da imprensa - diante do autoritarismo, das injustiças e da prestidigitação jurídica disfarçada de justiça, hoje no Brasil. A insegurança jurídica do País (nunca antes vivenciada) não é de responsabilidade de Bolsonaro, dos “militares golpistas” e nem dos ambulantes presos por depredarem o STF, mas sim de quem “escolheu” liberar e devolver os bens de traficantes de alta periculosidade, por “falta de provas”; inocentar condenados em três instâncias, por “erro” processual”; anular a vontade de milhares de eleitores, cassando deputados, por suposição de “crime” eleitoral; libertar criminosos confessos, condenados a mais de cem anos de prisão, com base em “chicanas” judiciais; determinar aos assessores usar da “criatividade” para incriminar adversários políticos.

O último ato desse descalabro jurídico foi a prisão de Oficiais do Exército, da ativa e da reserva – inclusive dois Generais – acusados de “tentativa de golpe de Estado” com base em uma investigação – que já dura dois anos - e até o presente não conseguiu comprovar nada além da cogitação dos crimes atribuídos aos supostos golpistas. Inacreditavelmente, prevalece a fábula de um golpe, que teria sido desencadeado em um fim de semana, sem liderança, tropa ou armamentos capazes de garantir a violência organizada mínima necessária à “tomada do poder”. Os magistrados escolheram tipificar de terrorismo as bíblias, bandeiras e pedaços de pau arremessados contra instalações vazias de um governo criminosamente omisso diante da depredação do patrimônio público. Despreza-se o fundamento do Direito universal de que ninguém é passível de pena por cogitar (prescrito a no Código de Direito Romano). Despreza-se o devido processo legal. Despreza-se o Estatuto dos Militares, (Lei 6.880/Dez 1980), que no seu Artigo 74 prevê a prisão de um Oficial do Exército Brasileiro apenas quando em flagrante delito. Despreza-se a lógica, a inteligência, os direitos do cidadão, o bom senso. Desprezam-se até os fatos! Prevalece a indisfarçável perseguição política, calcada na presunção de crimes inexistentes, reforçada por prisões arbitrárias, verdadeiras torturas psicológicas com vistas a “delações premiadas”, a fim de se enquadrar como “atentado violento ao estado democrático de direito”, desde recortes de conversas de WhatsApp até pichação de batom em estátuas.

O Direito sustenta a democracia, mas não há liberdade se a obediência revolta a razão. Decisões judiciais não são escolhas, necessitam de critérios, e não há governo – ou justiça – se a lei não é obedecida.

Temos nos resignado às injustiças e abusos reiterados, não por dúvida, concórdia ou súbita impaciência, mas sim – ao contrário – por uma inexplicável paciência em tolerar as falácias e a arrogância da nossa atual “juristocracia”.  Entretanto, condescendentes com o indefensável, o injusto e o absurdo, caímos na indiferença. Estamos lavando as mãos para morte da nossa democracia.

 

Gen Marco Aurélio Vieira

Foi Comandante da Brigada de Operações Especiais e da Brigada de Infantaria Paraquedista

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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