Terça-feira, 27 de agosto de 2024 - 08h11
Na
mídia, nas instituições de ensino, na política, nas conversas de bar, enfim,
seja onde for, a expressão “empoderamento feminino” tornou-se, praticamente, um
mantra. Creio que a maioria das mulheres, em geral, sem muita reflexão sobre o
tema, chancele o jargão, já que, ao menos à primeira vista, traz a sensação de
ser elogioso ou quiçá, um presságio de algum tipo de revolução em prol da ala
feminina do mundo. A sensação de angariar poder é, inegavelmente, boa. A
minoria, por sua vez, que critica o termo, em que pese o ordinário verniz de
erudição, parece ter, igualmente, em regra, pouco respaldo em argumentos e
pensamentos meticulosos. Repetem-se, indiscriminadamente, os mesmos chavões.
Por exemplo, certa vez, assisti a uma entrevista concedida por uma repórter
famosa em que ela dizia não gostar da “palavra empoderamento feminino” porque
conferiria a impressão de ser necessário que o poder fosse outorgado às
mulheres, o que seria falacioso, pois já o deteríamos. Sem adentrar na minúcia
acerca da coerência deste fundamento (ou de outros igualmente vagos), questiono
a sua relevância prática. Para mim, discutir se as mulheres estão, hoje,
empoderadas, se já eram detentoras de poder ou se esse poder lhes foi outorgado
por alguém deveria vir muito depois de compreender, afinal, o que é poder para
nós, mulheres.
Evidentemente,
quanto a isso, há respostas fáceis e prontas. Existe, claro, o óbvio. É natural
que ter poder abranja ter direitos, como direito à liberdade, à
autodeterminação, à igualdade, à integridade (física, psíquica e emocional), à
saúde, à educação, à livre iniciativa e, sobretudo, à dignidade. Entretanto, um
olhar minimamente atento revela que esses direitos não se estendem para além
dos direitos básicos inerentes a qualquer ser humano, independentemente de
gênero. Penso que ser titular de um verdadeiro poder seja muito mais do que ter
e poder exercer direitos básicos. Vejam, não estou contestando a incomensurável
relevância teórica e prática de garantir que as mulheres sejam, efetivamente,
titulares destes direitos e que possam exercê-los plena e integralmente. O que
afirmo é que lutar para que as mulheres sejam titulares de direitos básicos e
que possam os exercer não se confunde inteiramente com sermos detentoras de
poder. Ter direitos e poder exercê-los é apenas pré-requisito, quiçá, uma porta
de entrada para o poder. Misturar estas ideais, creio eu, está muito mais
associado com uma perspectiva claramente política do tema. Afinal, esse enlace
conceitual de assuntos (ainda que acintoso) leva a uma clara dicotomia
capciosa: se os conceitos de poder e titularidade de direitos se confundem,
alguém a favor do tal empoderamento feminino seria, automaticamente, a favor
dos direitos básicos das mulheres, bem como de seu exercício. Na contramão,
quem negasse o empoderamento das mulheres seria, então, opositor aos seus
direitos e, assim, ratificador do machismo estrutural, afrontando, no final das
contas, os contemporâneos valores sociais supremos do justo e do solidário.
Todas
essas divagações que dão margem a tanta elocubração ideológica e debates
regados a pedantismo oco não me parecem, de fato, impactar e tirar o sono das
mulheres de carne e osso com que convivo. Não nego, claro, que exista um
percurso ainda longo a seguir na busca por outros direitos relevantes e seu
exercício, em especial, quando estamos diante de classes menos favorecidas. No
entanto, a verdade é que eu vejo, sim, ao meu redor, as mulheres desfrutarem
daquilo que já foi conquistado. As mulheres no meu entorno, em sua grande
maioria, estudam, têm empregos e carreiras, têm liberdade (de ir e vir, de
planejar sua família, de seguir sua vocação, de manifestar suas ideias, de
exercer qualquer profissão...), têm segurança (aquela que é viável em um país
como o Brasil por ora), têm acesso à saúde (às vezes mais, outras menos a
depender da condição social, não do gênero), têm acesso à justiça (sim, o
judiciário segue machista, mas este será outro assunto), têm participação
política crescente... Enfim, eu enxergo mulheres detentoras de direitos de que
não eram titulares outrora exercendo-os, de modo geral, ainda que não em sua
plenitude, já de maneira razoável. É inegável que, sendo eu uma mulher de
classe média alta, tenho mais acesso e familiaridade com estas mulheres. Dito
isto, não me atreverei a discorrer, logicamente, sobre uma acurada análise
social sobre o quanto mulheres de cada classe detém direitos e desfrutam deles,
mas arrisco dizer que, em menos de cem anos, houve progressos colossais de que
todas nós gozamos, graças ao que nossa vida é completamente diferente da que
viveram nossas mães e avós.
Todavia,
ainda assim, ao me deparar com as mulheres de hoje, que desfrutam de tantas
vitórias, não vislumbro mulheres poderosas. Eu enxergo mulheres exauridas,
sobrecarregadas, solitárias (dentro e fora de relacionamentos), viciadas em
trabalho e ascensão, entorpecidas por antidepressivos e ansiolíticos, assoladas
por intensos sentimentos de culpa e remorso (sobretudo em relação a filhos),
enterradas em infindáveis sessões de terapia por acreditarem que são
problemáticas, frustradas por não atingirem padrões de beleza inalcançáveis,
dispostas a colocar a saúde em risco pela silhueta ideal, entupidas de
hormônios em busca do último suspiro de energia, perdidas entre os tantos
caminhos que a liberdade oferece, emocionalmente frágeis e instáveis,
pretensamente autossuficientes (quiçá, soberbas), confusas quanto ao papel a
desempenhar nos relacionamentos amorosos e na família, obcecadas por juventude
eterna, consumistas como se o seu valor dependesse do que podem comprar,
acumuladoras de funções supérfluas, prevaricadoras e procrastinadoras de funções
relevantes, altamente preconceituosas em relação aos nossos próprios atributos
femininos.... Talvez, tenhamos passado tanto tempo invejando a supremacia dos
homens que tenhamos, sem notar, internalizado que atributos preponderantemente
masculinos, como competitividade, agressividade, inflexibilidade, racionalidade
e independência são os que definem o valor de uma pessoa tanto nas relações
particulares quanto profissionais. Em vista disso, relacionamos nossos
atributos femininos, como sensibilidade, empatia, intuição, flexibilidade e
tolerância, com fragilidade e vulnerabilidade e, consequentemente, com o risco
de nova subjugação. Por esse motivo, creio que estejamos nos espremendo para
ocupar uma posição no mundo que, embora seja nossa, deva ser preenchida da
nossa própria forma, expressando nosso poder pela nossa feminilidade. De
maneira oposta, seguimos buscando poder (na verdade, mais que poder, realização
e felicidade) sob a perspectiva dos homens, ignorando nossas verdadeiras
necessidades e anseios.
Ouso
dizer que usamos nossa liberdade recém conquistada de forma irresponsável e
inconsequente, enjaulando-nos em novas gaiolas, de esponte própria, ainda mais
difíceis de escapar dadas as suas grades pouco evidentes. Sob a euforia desta
liberdade, repetimos que “o lugar da mulher é onde ela quiser”. No entanto,
isso não significa que a mulher deva estar em todos os lugares, dedicando-se,
com excelência, ao número máximo de atividades e funções que encontrar pela
frente. Captamos o emblema, na prática, como obrigação de onipresença.
Decidimos abraçar o mundo sem pedir ajuda, sem saber previamente se estavam
dispostos a ajudar e, principalmente, sem reconhecer e estabelecer nossos
limites. Buscamos ser, ao mesmo tempo, a profissional de alta performance com
remuneração exorbitante, a mãe presente e pessoalmente responsável pela
gerência do lar, a esposa compreensiva, acolhedora e fogosa, a esportista, a
saudável, a capa de revista, a filha cuidadosa, a amiga conselheira e pontual,
a filantropa habitual, a ativista do meio ambiente, a tutora de pet e,
ainda, dormir bem, reservar momentos de lazer, ter vida social e dedicar-nos a,
pelo menos, dois hobbies. E, contrariando o bom senso, sentimo-nos extremamente
desapontadas conosco com o deslinde óbvio dessa tentativa inócua, ou seja, o
desempenho de todas ou, ao menos, de muitas destas funções de forma medíocre ou
o adoecimento inexorável. A ampliação de nossos direitos não nos trouxe
superpoderes ou nos transformou em malabaristas para que estivéssemos aptas a equilibrar
tantos pratos. Alguns sempre caem e, com eles quebrados, temos também
arranhadas nossas autoestimas prepotentes. Somos uma geração doente de mulheres
que se envenenou com o antídoto e estamos criando uma geração de mulheres
igualmente enfermas, tendentes a crer, em vão, que tem capacidade sobre humana.
Para romper o ciclo, é preciso que aprendamos a escolher. Não é porque a comida
está servida na bandeja que precisamos nos empanturrar. Selecionar é difícil,
pois implica não apenas renunciar, mas também reconhecer os próprios limites. E
escolher bem, significa, no fim das contas, entender e perseguir o que
realmente é valioso, do que, a meu ver, enquanto nos comportarmos como crianças
mimadas e birrentas que não querem abdicar de nada, não seremos capazes.
Chego,
assim, à conclusão de que não estamos empoderadas, mas deslumbradas e
entorpecidas com conquistas relevantes no campo social, jurídico e político
que, lamentavelmente, não serviram de alavanca para que, de fato, alcançássemos
o verdadeiro poder sobre nossas vontades, nossos pensamentos, nossos ideais e
nossas vidas. E continuaremos agrilhoadas na caverna de Platão até que sejamos
capazes de reconhecer e compreender o poder e as verdadeiras necessidades de
nossa essência feminina, bem como de fazer boas escolhas e de ser resilientes
em relação a elas. Possivelmente, quando, enfim, nos alforriarmos,
abandonaremos essa batalha inglória em que competimos com os homens e
passaremos a ocupar nosso próprio, devido e exclusivo lugar de destaque e relevância
na sociedade. E, assim, encontraremos o verdadeiro poder e felicidade na paz
que nunca sentimos.
*Erika Cassandra de
Nicodemos, advogada especialista em direito de família e sucessões, graduada
pela Universidade de São Paulo, pós-graduada em Direito Empresarial pela
Fundação Getúlio Vargas, mestre em Direito Privado Europeu pela Facultá
degli Studi di Roma, mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo,
professora universitária
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