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Opinião não é indisciplina


Gen Marco Aurélio Vieira - Gente de Opinião
Gen Marco Aurélio Vieira

“É no Exército que é mais fácil e mais tentador estabelecer este princípio: cale-se e não raciocine.”                                   Leon Trotsky, intelectual bolchevique organizador do Exército Vermelho

 

Em qualquer organização, e principalmente no Exército, nenhuma prática é mais funesta do que sonegar opinião, com a justificativa da hierarquia ou da disciplina. A arte da guerra - e mesmo a democracia - recomendam exatamente o contrário, ou seja: não impedir, mas sim incentivar o jovem comandante a expressar sua opinião, e até sua própria vontade, submetida essa liberdade à disciplina e ao respeito às normas, simplesmente.  Ademais, a lealdade, princípio que fundamenta a liderança e a coesão dos homens em torno de qualquer grande empreendimento humano, depende muito da confiança mútua entre chefe e subordinados, somente obtida pelo conhecimento e respeito às opiniões livremente expressas.

Comandantes habituados a contentar seus superiores, e subordinados que sempre concordam com seus chefes não passam de incompetentes, além de naturalmente desleais. Essa incompetência não impede o aparelho administrativo militar (a burocracia militar) de funcionar, com êxitos medíocres e prejuízos subestimados, ao menos.  Acontece que um Exército precisa de uma organização combativa de massa, capaz de violência organizada, e não pode ser constituído de funcionários bajuladores e servis, mas sim de homens fortemente temperados do ponto de vista moral, capazes de empenhar a vida por seus valores e crenças.

O Soldado é diferente de qualquer outro “trabalhador” porque – a despeito de sua graduação – ele deve compenetrar-se da sua responsabilidade sobre cada assunto da missão, elaborando conscientemente uma opinião pessoal e sendo capaz de defendê-la corajosamente por todos os meios. Isso inclusive pode ser questão de sobrevivência, caso um combatente se veja sozinho no campo de batalha, por exemplo. Contudo, a opinião do subordinado não deve jamais ir de encontro à disciplina racionalmente compreendida (isto é, não burocraticamente), e nem de comprometer a unidade da ação.

A evolução da geopolítica ocidental depois da Guerra Fria buscou isolar a guerra da política, submetendo o militar a uma situação de dependência decisória que aos poucos lhe estreitou os horizontes, e promoveu o seu afastamento da compreensão mais ampla da ação política. Na verdade, os militares foram levados a concentrar sua atenção apenas nos objetivos imediatos da ação, o que fez com que eles perdessem de vista a própria natureza das relações políticas, que na sua essência são o fundamento da ação bélica. Assim, o estamento militar ocidental foi levado a certas práticas “democráticas” fundamentadas em atributos especificamente castrenses – com ênfase na disciplina – obrigando a “subordinação das Forças Armadas ao poder civil”, e demonizando qualquer posicionamento político das instituições militares. Não sem razão, o Exército Francês na década de 50 do século passado orgulhava-se de ser “o grande mudo” e, até o presente, o Exército Brasileiro considera transgressão disciplinar qualquer manifestação pública de conotação política, de seus militares. 

Mas, se na opinião do estadista francês Georges Clemenceau, “a guerra é um assunto importante demais para que se possa confiá-lo inteiramente às mãos dos generais” não podemos esquecer que ela continua sendo uma das maneiras eficazes de exprimir as intenções dos governos. Os conflitos na Ucrânia e em Gaza, bem como os ataques do Irã a Israel, ou as fanfarronices de Maduro contra a Guiana são as provas da atualidade desse entendimento. É necessário que o político e o General ouçam um ao outro e que eles consigam se entender, mesmo que não queiram. 

Nos últimos 35 anos, o viés ideológico da diplomacia, os revanchismos paroquiais obsoletos e a ignorância geopolítica dos governos do Brasil têm feito os políticos – e a própria sociedade – deixarem de ver a organização militar como um conjunto de relações de ajustamento de conflito, portanto políticas. Tal entendimento incapacitou o País de atuar estrategicamente no cenário mundial e desqualificou o poder militar para suas missões constitucionais. Pior ainda, fortaleceu os aspectos negativos da disciplina, o  que tem justificado a observância obtusa das leis e a obediência passiva das Forças Armadas ao governo, atitude consubstanciadas no que se conhece como “ethos burocrático”.

A predominância abusiva desse “poder civil” incompetente sobre o estamento militar,  agravada pela atual bem orquestrada campanha de descrédito das Forças Armadas movida pelo próprio governo, atolou a Defesa Nacional nesse ethos burocrático, situação diariamente constatada por seus aspectos exteriores:  simplesmente o chefe ordena e os subordinados obedecem; aquele que dá as ordens não se preocupa se elas preenchem uma função aglutinadora na relação das forças em presença; não há preocupação das ordens serem obedecidas porque se acredita nelas, e nos seus objetivos, ou porque se teme sanção disciplinar; e opiniões contrárias são consideradas transgressão, sequer são ouvidas.

Completamente surdo às ameaças do ambiente estratégico mundial, nosso “poder civil” entende que é necessário cortar os “privilégios” da classe militar, não vê qualquer ameaça em abrir a Amazônia para o estrangeiro, e pensa que o Exército deveria ser empregado como bombeiro nas queimadas.   Ministros em juízo afirmam que “os nossos militares gostam mais de suas armas do que de suas esposas”, enquanto autoridades advogam a criação de uma Guarda Nacional de cunho estritamente político, a fim de retirar do Exército parte de suas missões constitucionais.  

Dizia o General De Gaulle, ex-presidente francês e herói da II Guerra Mundial, que “[...] o  Exército está a serviço do Estado – com a condição de que haja um Estado”.  O General Goes Monteiro, que foi Ministro da guerra no Governo de Getúlio Vargas, afirmava que “[...] as Forças Armadas são instrumento da política externa do Estado”.

Hoje, diante de um governo incompetente e de soldados incapazes de ao menos expressar uma opinião contrária ao que se alardeia diária e injustamente sobre suas instituições, nos parece que o Exército Brasileiro não está a serviço do Estado, e que as Forças Armadas não são instrumento da nossa política externa.

 

Gen Marco Aurélio Vieira

Foi Comandante da Brigada de Operações Especiais e da Brigada de Infantaria Paraquedista

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