Sábado, 27 de julho de 2024 - 08h05
O tema proposto enfatiza aquilo que seria propriamente do
povo, isto é, popular. Por causa disso, é válido partirmos do próprio
entendimento comum, ou, do senso comum, para responder a uma questão mais
ampla: “Quando a sabedoria popular retrata um preceito”. Como nos indica, o
ponto de partida é um problema epistemológico que se denomina em nosso
dia-a-dia como sabedoria — a saber: uma linha de raciocínio acerca de um objeto
em vista —, que pode ser apresentada de pessoa a outra de diversas formas, seja
oral, seja escrita.
Não há dúvidas de que o conhecimento, assim como tudo que
está inserido nessa lógica neoliberal, é hierarquizado. Essa hierarquização é
transmitida, coerentemente e não contrariamente, até pelo próprio ambiente
acadêmico, onde o único tipo de conhecimento realmente respeitado é aquele com
respaldo científico. Espera-se que aqui não haja uma má compreensão a ponto de
s3 interpretar essa tese como um apelo ao negacionismo. De maneira nenhuma esse
pensamento anti-ciência deve ser passado adiante. Isso é apenas mau caratismo
intelectual declamado atualmente pela extrema direita que domina o bras8 e
outros países.
Para melhor esclarecer é preciso compreender que, para além
da academia, o conhecimento transita de pessoa para pessoa no viver do seu
dia-a-dia. Empiricamente, sabemos que o choque entre duas bolas de bilhar gera
movimento, não sendo necessário Hume e Newton nos apresentar isso com
embasamento filosófico e científico. O respaldo científico nunca foi necessário
para compreendermos o fato de que o contato entre duas bolas gera energia
(atrito) e movimento. Pergunte a qualquer “tiozão” do bar sobre causalidade e
inércia que ele possivelmente irá divagar, mas, ao mesmo tempo, sua coleção de
troféus de sinuca nos mostra que ele, de certa forma, possui ciência. Isto é,
definitivamente, um conhecimento popular aplicado com estratégia, cálculos,
naquela mesa do bilhar.
Agora, para não focarmos apenas na física, a sabedoria
popular reporta diversos tipos de conhecimento cinetífico, como a sociologia.
Durkheim nos mostrou o que é um fato social, já o povo — inclui-se aqui o
sociólogo, pois ele também faz parte da sociedade — é quem sofre a ação desse
fato sem ao menos saber sua definição. Prova- disso é que o fato social é
anterior à escrita do Durkheim, que conceitualizou e descreveu a respeito desse
fenômeno. E que, sem dúvidas, o fez de maneira exemplar. Dito isso como
exemplo: um indivíduo sabe que se não levar um presente a uma festa de
aniversário é descordial e ao mesmo tempo ele pode não ter ciência de que isso
é um fato social, ele apenas segue o que foi empiricamente lhe apresentado no
seu viver cotidiano.
Do mesmo modo funcionam os ditados populares. Por mais que
eles sejam muitas vezes taxados como clichês, seu conteúdo pode trazer demasiada
veracidade. “De grão em grão a galinha enche o papo” nos mostra a importância
de realizar pequenas tarefas todo dia para que alcancemos a realização de uma
tarefa maior. Nesse caso, a sabedoria popular trata de um preceito sociológico,
pois o ciscar da galinha se refere ao trabalho humano.
Finalmente, feito esse caminho, podemos compreender melhor
aquilo que lá em cima foi exposto: “Quando a sabedoria popular retrata um
preceito sociológico”. Certificado que a sabedoria popular retrata um preceito
sociológico, então, seria essa sabedoria a solução para uma sociabilidade
duradoura e pacífica? Ora, o conhecimento popular, como é explícito nos
próprios termos, é muito mais disseminado do que um conhecimento de fato
científico. A capacidade de transitar do primeiro é, claramente, superior. Isto
seria motivo suficiente para depositarmos nossa fé? É essencial lembrar-nos que
a sabedoria popular não está isenta de equívocos e até absurdos.
Definitivamente limão e própolis não curam a covid como acreditaram as tias e
os tios do zap. No entanto, nos concentremos mais naqueles conhecimentos
populares realmente efetivos.
Assim como “de grão em grão a galinha enche o papo”,
“violência gera violência” e “respeito gera respeito”. Em um mundo “[...] cada
vez mais interconectado (tecnologicamente) e desconectado (socialmente) [...]”, é preciso pregar respeito para que
assim gere mais respeito. Somos humanos e está em nossa natureza ser sensível
àquilo que nos é exterior. Assim como sentimos o fogo queimar e, num ímpeto, retiramos
a parte do corpo que queima, sentimos as palavras do outro e agimos a partir
delas. A partir disso, temos que o Outro é potencialmente transformador e que o
simples contato entre as pessoas pode vir-a-ser revolucionário.
Ao escrever esse texto, lembro-me de um causo que me
ocorreu quando viajava para as montanhas mineiras: um defeito no carro surgiu
durante uma leve batida embaixo por causa das sinuosas e trepidantes estradas
de terra. Bastou uma leve e proveitosa conversa com dois simpáticos senhores
que trabalhavam no parque da Canastra para que o problema fosse resolvido. Foi,
possivelmente, por causa de respeito e empatia que aqueles dois senhores sequer
cobraram de nós o conserto do carro. Aliás, eles nos disseram para que, da
próxima vez que voltássemos, parássemos no parque para terminamos nossas
conversas! Talvez, sejam nas simples ações do nosso cotidiano que está essa
revolução: no simples ato de dialogar com um igual.
Disso, podemos tirar que uma solução para um mundo
extremamente tecnológico e globalizado, todavia, socialmente isolado ou até
mesmo desolado — o neoliberalismo prega imperativamente o individualismo que
muitas vezes nos aflige —, esteja nas coisas simples do mundo, como nos mostra
Manoel de Barros em suas poesias.
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