Terça-feira, 8 de setembro de 2020 - 18h34
Virou lugar-comum a afirmação de que a agricultura familiar é responsável por cerca de 70% dos alimentos produzidos no Brasil, sem que se encontrem dados consistentes que confirmem isso. Não se trata aqui, e é bom deixar isso claro, de diminuir a importância da agricultura familiar no contexto produtivo do agro brasileiro, responsável pela geração de emprego e renda para cerca de 10 milhões de pessoas.
Vamos explicar. Dados do Censo Agropecuário 2017-2018, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelam que 76,8% dos 5,073 milhões de estabelecimentos rurais do Brasil foram caracterizados como pertencentes à agricultura familiar, conforme estabelecido pelo Decreto 9.064, de 31 de maio de 2017.
De acordo com o Artigo 3º deste Decreto, a Unidade Familiar de Produção Agrícola (UFPA) e o empreendimento familiar rural devem atender aos seguintes requisitos: II - utilizar, no mínimo, metade da força de trabalho familiar no processo produtivo e de geração de renda; III - auferir, no mínimo, metade da renda familiar de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento; e IV - ser a gestão do estabelecimento ou do empreendimento estritamente familia |
Em termos de valor de produção, os dados do Censo Agropecuário precitado indicam que a produção da agricultura familiar gerou receita de 106,5 bilhões de reais (23% do total), enquanto a geração de receita da agricultura não familiar foi de 355,9 bilhões de reais (77% do total). Comparando com o levantamento anterior, de 2006, houve redução de 10,2% no valor gerado pela produção agropecuária familiar.
Até aqui, os dados demonstram a relevância econômica e social da agricultura familiar no Brasil. Vamos tratar agora de sua participação quanto aos alimentos produzidos. Em nota técnica publicada em 2014 na revista Segurança Alimentar e Nutricional, editada pela Unicamp, o professor Rodolfo Hoffmann pondera que a afirmação de que 70% dos alimentos produzidos no Brasil advêm da agricultura familiar não faz sentido. Para este autor, seria necessário definir o total de alimentos. “Somam-se toneladas de soja com toneladas de uva e toneladas de açúcar? Toneladas de açúcar ou toneladas de cana-de-açúcar? [...] Toneladas de trigo, de farinha de trigo ou de pão?” Para Hoffmann, em virtude dessa grande heterogeneidade dos alimentos, não faz sentido somar as quantidades físicas.
Para este artigo, dada as dificuldades apontadas pelo professor Hoffmann, vamos considerar a produção primária agrícola e pecuária, sem entrar no mérito de produção de alimentos, que requer uma análise mais elaborada e não é o objeto principal do que se pretende abordar.
Com base nos dados do Censo Agropecuário 2016-2017, foi elaborada uma lista com uma cesta de 65 produtos agrícolas, abrangendo a produção de grãos, cana-de-açúcar, hortaliças e espécies frutíferas. No conjunto desses 65 produtos, a participação da agricultura familiar foi de apenas 5,7%. Quando se exclui, desta cesta, a soja, o milho, o trigo e a cana-de-açúcar, que são culturas industriais cultivadas em médias e grandes áreas, a participação da agricultura familiar alcançou 30% do total produzido, em toneladas.
Entretanto, a participação da agricultura familiar tem importância significativa na maioria dos produtos hortícolas e em algumas espécies frutíferas, como é o caso do morango, com participação na produção de 81,2% e uva para vinho e suco (79,3%).
Com relação à produção da pecuária, os dados do Censo Agropecuário 2016-2017 mostram que 31% do número de cabeças de bovinos, 45,5% das aves, 51,4% dos suínos, e 70,2% de caprinos pertencem à agricultura familiar. Além disso, este segmento foi responsável por 64,2% da produção de leite no período de referência do Censo. A Tabela 1 apresenta a participação da agricultura familiar em alguns produtos selecionados.
Tabela 1 – Participação da agricultura familiar em alguns produtos selecionados. Brasil, 2017-2018.
Conforme dados do Censo Agropecuário 2017-2018, em Rondônia 81,3% dos 91.438 estabelecimentos recenseados foram classificados como pertencentes à agricultura familiar, portanto acima da média nacional de 76,8%.
No tocante à participação desse segmento na produção agrícola, sua participação no conjunto dos 65 produtos selecionados foi de 11,1%, quase o dobro da média nacional. Quando se exclui, dessa lista, a soja, o milho e a cana de açúcar, esse valor aumenta substancialmente, para 57,8%. Este é um dado relevante, pois indica que mais da metade dos produtos agrícolas do estado, excluídas as três culturas industriais citadas, advém do trabalho dos agricultores familiares, demonstrando a importância socioeconômica do setor para a economia local.
Dentre os produtos mais importantes cultivados no estado, o abacaxi se sobressai, com 93,1% da produção sendo advinda da agricultura familiar, seguida do café (90,4%), da mandioca (88,8%) e do cacau (87,9%). Na pecuária, destaque para a produção de leite, com participação de 88,1%. A Tabela 2 lista os principais produtos do estado e a participação da agricultura familiar na sua produção.
Tabela 2 – Participação da agricultura familiar em alguns produtos selecionados. Rondônia, 2017-2018.
No caso da mandioca, apenas 35% da produção foi vendida, sendo que grande parte é consumida e processada no próprio estabelecimento, constituindo-se em importante fator para a alimentação das famílias dos agricultores familiares.
Ainda que os dados da produção agropecuária não confirmem o que se diz sobre a participação da agricultura familiar nesse contexto, não se pode negar a sua importância na produção alimentar do país, pois é grande geradora de renda e de empregos. Permito-me reproduzir textualmente as palavras do professor Hoffmann: “não é preciso criar ‘estatísticas’ sem sentido para mostrar a importância da agricultura familiar no Brasil”.
Como enfatizado, a agricultura familiar, mais do que a produção de números, precisa é de apoio e de incentivo para acessar mais facilmente o crédito rural, ter assistência técnica efetiva e, principalmente, acesso a tecnologias que permitam aumentar sua produção de forma sustentável e acessar os mercados de forma competitiva.
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¹ Calixto Rosa Neto é mestre em Administração, com foco em Mercadologia e Administração Estratégica. Atua como analista da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - Embrapa Rondônia desde 1983. Contato: calixto.neto@embrapa.
² Francisco de Assis Correa Silva é mestre em Administração – Marketing e desenvolve estudos de mercado com foco em cadeiras produtivas e de prospecção de demandas tecnológicas. Atua como analista da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - Embrapa Rondônia desde 1989. Contato: francisco.correa@
³ Leonardo Ventura de Araújo é mestre em Economia, com experiência nas áreas de Economia Agrária e dos Recursos Naturais. Atua como analista da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - Embrapa Rondônia, desde 2011. Contato: leonardo.araujo@
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