Terça-feira, 11 de junho de 2024 - 11h45
Em um artigo (Opinião – Jornal O Globo –
08/06/2024), o jornalista Carlos Alberto Sardenberg declara em alto e bom
título que “A greve nas universidades é contra os alunos e a sociedade”. Basicamente,
ele declara que não entende como os docentes das universidades federais podem
estar fazendo greve novamente e com as mesmas reivindicações. Ainda faz a
declaração de que greve se faz contra o capital e não contra governos. E que
deveria ser feito somente depois de fracassadas todas as tentativas de
negociação, afirmando que uma greve no setor público prejudica os alunos e a
sociedade. O jornalista segue por um caminho já trilhado costumeiramente pela
direita liberal e que nunca colocaram os movimentos grevistas como atos
coletivos extremados pela afirmação da cidadania e em defesa de direitos muito
importantes para toda a sociedade.
Primeiramente, esta não é uma greve somente de
docentes das universidades. Esta é uma greve de docentes das universidades (62
das 69 instituições de ensino superior, IFES) e dos institutos federais de
educação tecnológica (mais de 560 campi, dos 614 campi dos IFETs), mas é também
uma greve dos técnicos administrativos em educação, TAEs, destas instituições.
Em segundo lugar, o sindicato nacional dos
docentes, Andes-SN, tentou por 17 vezes, desde o ano passado, conversar com o
governo, tendo protocolado em todos estes momentos a sua pauta de reivindicações
sem sucesso. As outras entidades representativas dos docentes dos EFTs e dos
TAEs fizeram o mesmo. O governo só abriu a mesa de negociações em 7 de fevereiro
deste ano, no dia exato em que os TAEs inauguraram seu Comando Nacional de
Greve. Portanto, foi uma greve iniciada após exaustivas tentativas
infrutíferas de conversar com o governo.
O jornalista cita o drama do economista André
Portela, que teve sua formatura em 1989 atrasada por uma greve. Mas, se não
fosse aquela greve nas universidades federais, talvez ele nem se formasse com
a qualidade que desejava. Antes, talvez ele nem quisesse entrar em uma
universidade federal, na hora em que se decidiu por fazer o curso de economia,
não fossem as greves anteriores. Pior ainda, aqueles que vieram depois dele não
iriam ter a mesma oportunidade.
Sardenberg afirma que as reivindicações dos
docentes são as mesmas de 35 anos atrás (veja a situação das IFES mais
abaixo). Isto é parcialmente verdade. Mas ele omite as razões desta semelhança.
Há 35 anos, iniciou-se um processo de construção do que veio a ser chamado de
estado mínimo, no bojo da onda do neoliberalismo. Este processo globalizado
capturou o estado brasileiro em três vertentes que foram gradativamente se
intensificando.
A primeira vertente é a
institucionalização da dívida pública na legislação brasileira, estabelecendo
determinações para que o estado coloque o pagamento de seus juros e
amortizações à frente dos investimentos em educação, saúde, ciência e
tecnologia, desenvolvimento urbano, entre outras áreas vitais para o
desenvolvimento do país, limitando-os ainda a um teto de gastos. Além disso,
não há qualquer limite para crescimento da dívida como proporção do PIB ou para
o pagamento destas obrigações. Mas há algo ainda pior: desde 1997, tem sido
imposto um expressivo volume de operações de crédito para assegurar o mero
refinanciamento do estoque da mesma dívida, sequestrando-se assim o futuro das
novas gerações. Recentemente, mais um descalabro foi aprovado pelo congresso
(Projeto de Lei Complementar PLC 459/17) possibilitando a emissão de papeis do
governo com sequestro de parte do orçamento para sua garantia. Assim, todo o
esforço do país fica centrado na produção de superavits primários
somente para pagamento de juros da dívida pública, que só faz crescer, afogando
continuamente toda atividade do estado em suas obrigações constitucionais com o
investimento produtivo e com a população. Trata-se de uma máquina de produção
de renda para os super-ricos alimentada pela execução do orçamento público, ou
seja, com nossos impostos.
A segunda vertente é a da terceirização dos
serviços públicos. A terceirização é estimulada e mesmo forçada a ocorrer no
serviço público pela extinção de cargos de um lado e, de outro lado, pela colocação de outros cargos em desnecessidade,
tornando-os assim, impedidos para provimento através de concursos públicos.
Estes dois processos (extinção e disposição em desnecessidade de cargos públicos)
já ocorrem em larga extensão nas universidades públicas, chegando em certos
casos a tornar indisponíveis para concurso público cerca de 85% de todos os
cargos existentes. Ou seja, ao invés das Instituições
Federais de Ensino Superior (IFES) possuírem seu próprio pessoal
especializado segundo suas necessidades, para a maioria dos cargos a única via
é a terceirização, que é muito mais cara do que o provimento dos cargos de
carreira. Por exemplo, se a Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), desejando cumprir com a legislação vigente, precisar
fornecer assistência adequada a algum estudante cego empregando brailistas,
ela deverá terceirizar o serviço, porque este cargo foi colocado em
desnecessidade. Para se ter uma ideia da extensão deste problema, o governo
anterior, em um único dia, extinguiu 14.277 cargos, para os quais não se podem
mais fazer quaisquer concursos para os seus preenchimentos. A greve de
docentes neste momento é dedicada a corrigir apenas parcialmente estes efeitos
negativos de uma política de desprestígio da educação federal agravada nos
últimos seis anos.
A terceira vertente é a pressão de segmentos
poderosos do mercado financeiro para que os direitos universalizados de acesso
à educação, saúde e seguridade social de qualidade, garantidos na Constituição, sejam reduzidos ou mesmo deixem de
ser garantidos. As sucessivas reformas da previdência social
pública (desde 1993 já houve oito
reformas) e os recentes ataques aos mínimos de investimento público em
educação e saúde em todos os três níveis de governo produzem um ambiente de
deterioração e negligência com a atuação do estado na garantia daqueles
direitos. Além de tudo, se estas investidas tiverem sucesso, o futuro da
educação, da saúde e da seguridade social públicas será no mínimo trágico.
Para localizar o efeito desta pressão ao longo
do tempo, de 2013 a 2023, o orçamento discricionário das IFES, corrigido pelo
IPCA, caiu 55,33%. O salário de um professor titular com doutorado em regime de
dedicação exclusiva, de 2014 a 2024 (já incluindo o aumento de 9% fornecido
pelo governo no ano passado) caiu 26,59%. Pelo fato desta situação ocorrer
como política de estado no Brasil, independentemente de quem está no governo, é
o que faz a greve ser tão frequente. Ela é a única forma que os trabalhadores
em educação, assim como qualquer outro trabalhador, possuem para reduzir a
precarização acentuada na educação pública federal. Nós somos trabalhadores
como os metalúrgicos o são. É evidente, pelos elementos listados acima, que nós
estamos nos contrapondo ao capital improdutivo alimentado pelos juros da
dívida pública, que está aos poucos capturando cada vez porções maiores do
orçamento público para a produção de sua renda. Aparentemente, os interesses do
capital estão tão enraizados na máquina do estado, que o nosso patrão acaba
sendo um misto híbrido de governo e capital. Nós negociamos com o governo, que,
por dentro do estado, negocia com o capital - e seus representantes no Congresso e na própria máquina do estado - a abertura
de espaço no orçamento para a educação federal.
Não sabemos com quem o articulista conversou
sobre os estudantes, porque parece muito desinformado. Os líderes estudantis
de hoje, encastelados burocraticamente nas entidades locais, estaduais e
nacional, por forças das coalizões partidárias às quais pertencem, estão, na
verdade, contra o movimento dos docentes e dos TAEs. Em quase todas as
universidades, o que ocorre é uma rebelião de estudantes ao notarem a
passividade das diretorias de suas entidades. Claro, que não há unanimidade
entre eles. Unanimidade é uma coisa estranha a qualquer movimento social, mas
este movimento de reação à resignação de algumas lideranças estudantis tem sido
bastante forte em várias universidades.
Quanto ao dinheiro do orçamento público federal
estar curto, depende do ponto de vista de quem fala. A evasão fiscal no Brasil
é estimada em cerca de 8% do PIB, ou seja, algo próximo a um trilhão de reais,
estando centrada no Sul e Sudeste. A renúncia fiscal prevista no projeto de lei
da LDO para 2025 ultrapassa 640 bilhões e somente os grandes devedores
do Rio de Janeiro e de São Paulo contribuem com quase 500 bilhões de reais de
estouro nas contas do governo. Vale salientar que várias destas renúncias
fiscais não se justificam, como, por exemplo, os incentivos para a indústria
automobilística e a renúncia do imposto de exportação do agronegócio, dois dos
mais competitivos setores da economia mundial. Mas, tamanho poder econômico
encontra certamente quem os defenda dentro do estado, dentro dos governos,
dentro do congresso e, também, no jornalismo econômico brasileiro.
Como pode ser visto pelo relato acima, os
docentes das IFES e IFTs não fazem greve por fazer. Eles, além de terem que
trabalhar com condições extremamente precarizadas, devem repor cada minuto de
aula não dada durante a greve. Isto significa, frequentemente, prejudicar seu
tempo livre para atividades extras e mesmo suas férias.
Por isso, convidamos Sardenberg a deixar por alguns momentos os microfones e
computadores com os quais trabalha para visitar ao menos uma das universidades
públicas que estão em greve. Assim, poderá conhecer a complexidade das
relações que qualquer uma destas universidades possui com a comunidade extra
acadêmica em várias escalas de tempo e espaço. Por exemplo, lembrem-se que na
pandemia, foi na universidade pública que se encontraram os profissionais para
orientar a sociedade em como proceder e como produzir e aplicar vacinas. É na
universidade pública que são feitos todos os processos de desenvolvimento
científico que nos permitem adotar ou usufruir do uso de novas tecnologias. É
na universidade pública, através de seus serviços de assistência médica,
odontológica, fisioterapêutica e de ensino no primeiro e segundo graus, que são
formados grande parte dos melhores profissionais. Há uma rede de pesquisa
científica e troca de informações que interliga todas as nossas universidades
entre si e com outras universidades espalhadas pelo mundo, conectando não
somente saberes, mas também culturas, ajudando a difundir a solidariedade e
paz entre os povos.
Possuindo estas relações tão profundas e
complexas com as sociedades a nossa volta, torna-se realmente interessante a
pergunta do jornalista: por que o governo demora dois meses para se preocupar
com esta greve? Talvez seja porque setores poderosos da economia se preocupam
mais em justificar sua atuação predatória e especulativa junto ao capital do que
em mostrar para a população como estão ameaçados os seus serviços mais
essenciais e importantes, como a educação, a saúde e a seguridade social.
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