Sexta-feira, 13 de dezembro de 2024 - 08h35
A história recente do setor elétrico brasileiro
coincide com a privatização da geração, transmissão e distribuição de energia
elétrica no país. O que ficou conhecido como a “reestruturação do setor
elétrico”, iniciada no governo FHC em meados dos anos 90, seguiu os preceitos
do neoliberalismo vigente, propondo a redução da presença do Estado na vida
nacional, priorizando a participação do mercado em setores estratégicos.
Mudanças substanciais ocorreram no setor desde que
a energia elétrica foi transformada em uma mera mercadoria, e não mais um
serviço essencial prestado pelo Estado para a sociedade. O modelo mercantilista
imposto desestruturou o planejamento, privatizando empresas e criando regras
regulatórias quase que diariamente. Acabou transferindo a responsabilidade pelo
suprimento/fornecimento de energia elétrica, para empresas privadas, cujo
objetivo estatutário é gerar lucros, e dividi-los com seus acionistas. O que é
geralmente incompatível com as necessidades e exigências da população.
As distribuidoras estaduais de energia elétrica
foram leiloadas sob intensa crítica e reação de setores que rechaçavam as
privatizações. Para atrair o setor privado às compras, como dizia-se na época,
“era necessário aliviar, facilitar nos contratos de privatização, nas suas
cláusulas”, inclusive garantindo que os reajustes tarifários ordinários anuais
fossem superiores ao da inflação. Além de reajustes extraordinários e revisão
tarifária a cada 5 anos. Outro mecanismo para aumentar o caixa das
concessionárias foi a criação em 2015 das bandeiras tarifárias.
Nestes contratos de privatização estão as mazelas
das tarifas exorbitantes e a impunidade das empresas, por não cumprirem a
prestação adequada e contínua do serviço em sua área de concessão. Os contratos
garantiram que não ocorresse a diminuição dos lucros das empresas. A noção de
equilíbrio econômico-financeiro, funcionou como um mecanismo de proteção ao
capital investido pelas empresas, garantindo assim que seja sempre remunerado.
Foi criado no setor elétrico, o “capitalismo sem risco”. E quem paga a
conta é o consumidor, a sociedade brasileira.
As vantagens oferecidas não foram somente através
das tarifas. Mas também na regulamentação e frouxidão da fiscalização, como
admitiu o próprio ministro do MME ao afirmar à imprensa que “os contratos
atuais de distribuição são frouxos e dão poucos mecanismos à agência reguladora
e ao poder concedente de cobrar da distribuidora melhor qualidade do serviço”.
Foram muitas as consequências negativas da
privatização. Como é de praxe, houve demissões de pessoal nas empresas,
desmantelando a capacidade operativa de manutenção e atendimento das demandas
dos usuários. A degradação e precarização das condições de trabalho dos
eletricitários, resultou no péssimo atendimento e na baixa qualidade dos
serviços prestados.
A ocorrência dos reiterados apagões e
descontinuidade no fornecimento de energia em várias partes do Brasil,
atendidas por distintas empresas, foram claras quebras de contrato, cujas
consequências em alguns casos foram multas aplicadas às empresas, que raramente
foram pagas. O caso da empresa italiana Enel foi o mais recente e emblemático.
Em 2023 e 2024, em duas situações similares, milhões de domicílios na capital
de São Paulo e arredores, ficaram sem luz após uma ventania. Neste caso a
energia só retornou depois de uma semana
A realidade pós-privatização mostra o grande
pesadelo dos consumidores de energia elétrica. O que era propagandeado como
benefícios e ganhos do processo de privatização não ocorreram. Nem a modicidade
tarifária, nem a melhoria na qualidade dos serviços prestados pelas
concessionárias, nem os investimentos em tecnologia/inovação, e muito menos uma
eficiente gestão empresarial.
A partir de 2025, começa a findar a vigência,
estipulada em 30 anos, dos contratos de concessão dos serviços públicos de
distribuição de energia elétrica. Entre 2025 e 2031, 20 contratos de distintas
concessionárias chegam ao fim. E é prerrogativa do poder concedente, o
Ministério de Minas e Energia (MME), decidir se prorroga ou não essas
concessões.
A decisão tomada pelo governo federal foi pela
prorrogação por mais 30 anos, podendo mesmo ser solicitada a prorrogação
contratual antecipada. Em 21 de junho de 2024, foi publicado o Decreto no
12.068, que estabeleceu mudanças pontuais, e definiu diretrizes similares às já
existentes nos contratos atuais, que foram violadas sistematicamente pelas
concessionárias. Sem dúvida com a atual decisão governamental as distribuidoras
de energia elétrica continuarão penalizando o povo brasileiro, seguindo como um
dos principais algozes do consumidor, e da economia nacional.
Tal decisão foi tomada à margem da sociedade, sem
uma ampla discussão, sem transparência, mantendo a opacidade que caracteriza o
setor elétrico. Ausência de canais efetivos para a participação popular,
permite o monopólio das decisões que têm o setor privado como o principal
beneficiário. Não é espanto nenhum que as distribuidoras, através do lobby
poderoso da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica
(Abradee), deram pleno aval às decisões governamentais quanto à renovação das
concessões.
Para reverter este processo privatizante na área da
energia, que tantas mazelas tem legado ao povo brasileiro, não se pode esperar
nada do governo federal. Ninguém com poder político e dinheiro virá em socorro
da sociedade. Cabe apenas a nós, enquanto sociedade civil organizada fazer o
enfrentamento político. Depende da gente.
A reflexão que se impõe, portanto, é se a
privatização da infraestrutura de serviços essenciais, como a energia,
realmente beneficia a população? Se a privatização garantiu maior eficiência ao
setor? Se a modicidade tarifária ocorreu, como prometiam os “vendedores de
ilusão” ao justificarem as vantagens da privatização? Se a qualidade dos
serviços prestados pelas empresas distribuidoras atendeu aos regramentos
impostos nos contratos para o fornecimento de energia? E se as multas aplicadas
às distribuidoras solucionaram/amenizaram os problemas causados?
A sociedade exige mais democracia, maior
participação, mais transparência em um setor estratégico, que insiste em não
discutir com a sociedade as decisões que toma. A constatação é de uma
desastrosa gestão das distribuidoras resultando na péssima qualidade dos
serviços oferecidos, tarifas abusivas, e de uma completa omissão, leniência, e
mesmo, em certos casos, prevaricação de agentes públicos no controle e
fiscalização. É preciso repensar o modelo de privatização e colocar o interesse
público em primeiro lugar.
Neste sentido é urgente a estatização do setor
elétrico, iniciando pela distribuição. Nada custaria aos cofres do tesouro
nacional, pois os contratos estariam finalizados, e não haveria nem
prorrogação, nem nova licitação.
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Heitor Scalambrini Costa é professor associado aposentado (não inativo) da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduado em Física, Unicamp/SP,
mestrado em Ciências e Tecnologia Nuclear DEN/UFPE e doutorado em
Energética-Commissariat à l’Energie Atomique-Cadarache/Université de
Marseille-França. Membro da Articulação Antinuclear Brasileira.
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