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CONCURSO PÚBLICO PARA PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA EM RONDÔNIA: ENTRE AS RAZÕES PARA CELEBRAR E AS QUESTÕES PARA PROBLEMATIZAR


 CONCURSO PÚBLICO PARA PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA EM RONDÔNIA: ENTRE AS RAZÕES PARA CELEBRAR E AS QUESTÕES PARA PROBLEMATIZAR - Gente de Opinião

Profª Dra Josélia Gomes Neves
joselia.neves@pq.cnpq.br  

A minuta do projeto de lei que deu origem a Lei Complementar 578/2010 que trata da carreira docente indígena e que estabeleceu a realização do concurso público específico para professores indígenas que está acontecendo neste domingo, teve início em uma reunião inicial nos dias 12 e 13 de fevereiro de 2009.

Essa primeira reunião aconteceu nas dependências do Ministério Público Federal em Rondônia MPF/RO na cidade de Porto Velho sob a coordenação da então Procuradora da República Lucyana Pepe, inclusive foi este órgão que atendendo a demanda do movimento indígena e indigenista – Organização dos Professores Indígenas de Rondônia e Noroeste do Mato Grosso - OPIRON e Núcleo de Educação Escolar Indígena de Rondônia - NEIRO, mobilizou docentes e lideranças de diferentes povos, além de setores como a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, o Tribunal de Contas do Estado - TCE, a Secretaria de Educação Estadual - SEDUC, o Conselho de Missão entre Povos Indígenas – COMIN, a Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR, da qual fui representante, dentre outros, para discutir e elaborar o referido documento.

Posteriormente outros encontros aconteceram, infelizmente não participei mais em função de agenda do doutorado em São Paulo, mas houve o debate em Alta Floresta em 29 de maio de 2009, depois o tema foi discutido na 1ª Conferência Regional de Educação Escolar Indígena em julho deste mesmo ano em seguida a proposta foi concluída em agosto de 2009 na cidade de Guajará Mirim. Após duas reuniões ocorridas no inicio de 2010 foi encaminhada a Mensagem 085 de 31 de maio de 2010, assinada pelo governador Cahula à Assembleia Legislativa do Estado, resultando mais adiante, após um grande trabalho interinstitucional, com a contribuição de outros procuradores na materialização da Lei Complementar 578 aprovada em junho de 2010.

Inegavelmente são duas respostas significativas para os Povos Indígenas - tanto a publicação da Lei 578/2010 como a realização do concurso público - representam avanços importantes para a Educação Escolar Indígena de Rondônia, ações que fazem valer o artigo 3º, inciso VI da referida Lei a “garantia do reconhecimento do valor do profissional de educação indígena, asseguradas pelas condições dignas de trabalho e a progressão na carreira, compatíveis com sua tarefa de educador”, um ponto final na continuação dos contratos em cargos comissionados e com eles, a falta de estabilidade e a inexistência de ascensão funcional, fatores que penalizaram e precarizaram por muito tempo o trabalho docente indígena no nosso estado.

Desde julho tem sido bastante divulgado a realização deste concurso na mídia: “Rondônia inova e abre concurso para contratação de professores indígenas”, “Rondônia realiza 1º concurso para professor indígena do estado”. No intuito de refletir o referido marco, um processo em andamento, apontamos algumas questões que consideramos importante referentes ao Edital 131 de 22/05/2015 coordenado pelo Governo do Estado de Rondônia e executado pela empresa FUNCAB, para professores, professoras indígenas e técnico educacional nível 1.

Inicialmente havia uma expectativa de que o Governo dialogaria com a OPIRON – Organização dos Professores Indígenas de Rondônia e Noroeste do Mato Grosso e o Núcleo de Educação Escolar Indígena de Rondônia – NEIRO, a minuta do edital, o que não aconteceu. Vale relembrar que em 2012, a Justiça Federal do Amapá suspendeu o concurso público para o cargo de professor indígena daquele estado por ter acontecido à revelia das lideranças indígenas, do Ministério Público Federal no Amapá (MPF/AP) e outros órgãos indigenistas no referido processo, tendo em vista a necessidade de ouvir os Povos Indígenas, direito reiterado pelo Parecer 13 e Resolução 5/2012 que destaca o que foi acordado na “[...] Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, ratificada no Brasil, por meio do Decreto Legislativo nº 143/2003, no que se refere à educação e meios de comunicação, bem como os mecanismos de consulta livre, prévia e informada”, às etnias.

Assim, a leitura do Edital 131 de 22/05/2015 a nosso ver atende parcialmente a Lei Complementar 578/2010. Contempla a preocupação no que diz respeito a exigência da declaração de pertencimento étnico, bem como do reconhecimento da comunidade, isso é fundamental pois em tempos de cumprimento de políticas de ação afirmativa podem aparecer “indígenas de ocasião” com intuito de surrupiar direitos dos povos originários.

Materializa uma demanda histórica do movimento, a visibilidade do papel do Sabedor Indígena, através do reconhecimento de seus conhecimentos culturais vinculados ao reconhecimento financeiro, um parceiro das antigas do docente indígena desde a implantação da escola nas aldeias que contribuiu para formatar a perspectiva específica e diferenciada desta instituição, por meio da “[...]recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências”( LDB 9394/1996, art. 78, inciso I), bem como a implantação do Currículo Intercultural, pois sua presença na escola permite a inserção dos “[...] conteúdos curriculares especificamente indígenas e os modos próprios de constituição do saber e da cultura indígena”.(Resolução 3/1999, inciso IV).

No entanto, ao mesmo tempo que a Lei Complementar - LC 578/2010 reconhece a importância do Sabedor indígena na Escola (e aí não é responsabilidade do Edital, é preciso problematizar a própria Lei), talvez aprisione este pensador do povo, na medida em que os saberes nas sociedades indígenas são diversificados, há os bons caçadores, os excelentes artesãos, os homens da pinturas, os tocadores de flautas, os narradores dos mitos, as mulheres das cestarias, fazedoras de adereços, enfim, um único sabedor ou sabedora não dá conta desta pluralidade de saberes, o que pode possivelmente ocorrer é o afastamento dos demais diante do novo funcionário público. Um fundo flexível talvez contemplasse melhor estas especificidades.

Mas em que Edital 131 deste ano não atende a Lei Complementar 578/2010 ? A meu ver, em várias questões:

 O quadro demonstrativo do anexo I da lei mencionada aponta um quantitativo de cargos de professores indígenas correspondentes a um total de 434 (que exigem titulação formal), com a seguinte divisão por níveis: o Nível A com 195, o Nível B com 239 exceto o Nível Especial (Sabedor indígena). Porque o O Edital131 de 22/05/2015, disponibiliza apenas 96 vagas para estes profissionais? Ou seja menos da metade dos cargos criados pela Lei Complementar 578/2010? Levando em conta que estes cargos foram criados em 2010 e houve uma ampliação da rede física da educação escolar indígena, que houve a conclusão de duas turmas do Projeto Açaí (magistério indígena) e  uma de estudantes indígenas com graduação pela UNIR – Campus de Ji-Paraná, o Curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural, totalizando assim em cerca de 300 profissionais habilitados, é de se estranhar o porquê do distanciamento destes números... A não ser que se pretenda renovar os contratos temporários...

Ainda sobre o quantitativo de vagas, há várias situações problemáticas, como a da Terra Indígena Igarapé Lourdes em Ji-Paraná-RO, onde há previsão de apenas uma vaga para Ciências da Natureza e Matemática Intercultural. No entanto, há dois professores inscritos no concurso, representantes de dois diferentes povos que habitam este território. Indago: o aprovado irá ministrar aula nas escolas das duas etnias? E como fica o art. 3º, inciso V da Lei Complementar 578/2010, que assegura a “garantia de ensino através de Professores Indígenas, preferencialmente da mesma etnia que os alunos;”? A mesma preocupação se aplica a discrepância entre os cargos criados para o Técnico Educacional Nível “1” e as vagas efetivamente disponibilizadas no Edital ora analisado.

Voltando ao Sabedor Indígena,  o quantitativo de vagastambém é decepcionante, já que não há exigência/dependência de titulação formal. O atual Edital apresenta apenas 20 vagas enquanto o quantitativo estabelecido pela LC 578/2010 é de 127 cargos.

Em relação a prova da Língua Materna o Edital 131 de 22/05/2015 estabelece que as questões para este componente serão objetivas e discursivas. Considerando a diversidade linguística existente no estado de Rondônia, pergunto  quem irá fazer as correções destas provas? Quantos/quem serão os linguistas ou indígenas das próprias etnias os avaliadores? E aqueles povos indígenas que não fazem mais uso de suas línguas, como serão avaliados considerando que o quantitativo de questões corresponde a 50 (cinquenta) e a pontuação a 100 (cem)? O mesmo caso se aplica a situação de sabedores ou sabedoras cuja primeira língua é a portuguesa, qual o papel do indígena na banca avaliadora? Obviamente, um aspecto que evidencia um não saber da situação indígena de Rondônia.

E que critérios orientaram a seleção de alguns dos conteúdos da prova da Língua Materna?“Sistema de escrita: o alfabeto da língua materna.Vocabulário básico em língua materna: numerais; partes do corpo humano; armas e instrumentos. Construção de frases em língua materna e tradução em língua portuguesa”. Considerando os processos formativos pelos quais os docentes indígenas tem trilhado - IAMÁ – Instituto de Antropologia e Meio Ambiente, Projeto Açaí – Curso de Magistério Indígena (nível médio) e Licenciatura em Educação Básica Intercultural (UNIR), a maioria dos inscritos tem em média dez anos de estudo, além da experiência em sala de aula, estes temas, a meu ver, estão muito aquém de suas capacidades, poderiam ser um pouco mais desafiadores.

Porque o prazo para o recurso contra o indeferimento da isenção de pagamento de taxa foi tão reduzido? Considerando as distâncias existentes no estado de Rondônia, principalmente em relação aos centros urbanos, o quantitativo de aldeias de acesso fluvial, dentre outros, acredito que é preciso rever esta concepção de temporalidade.

Porque o Edital 131 de 22/05/2015, não considerou oanexo IV da Lei Complementar 578/2010 que trata dos 48 (quarenta e oito) cargos destinados ao profissional técnico administrativo educacional nível 3 (supervisor, orientador, assistente social, psicólogo, nutricionista e antropólogo)?

Outras considerações

Os conteúdos de História e Geografia de Rondônia soam como piadas de mau gosto pois limitam-se a historiografia extremamente etnocêntrica que exclui, silencia e nega as contribuições dos Povos Indígenas na formação da sociedade rondoniense e há inegavelmente referenciais mais inclusivos.

Há termos em desuso como “séries iniciais”, a própria LC 578/2010 adota a nomenclatura atualizada em consonância com outros textos legais, isto é, “anos iniciais”;

O nível B contempla as 4(quatro) áreas correspondentes à formação proposta no Projeto Pedagógico do Curso – PPC, a Licenciatura em Educação Básica Intercultural – da Campus de Ji-Paraná, provavelmente pesquisado via internet já que não tenho notícia que houve algum diálogo entre a SEDUC e a UNIR neste sentido;

E por fim, questiono a Prova de Títulos que embora como de praxe, tenha caráter classificatório, no que tange a pontuação, tanto no Nível A como no Nível B evidencia um desconhecimento abissal da realidade educacional indígena em Rondônia, aliás estendo também para a realidade não indígena, pois é simplesmente inalcançável. Por exemplo, no Nível A, no que diz respeito ao professor ou professora com formação em magistério (nível médio), há exigências de apresentação de trabalhos em eventos – um quesito com poucas chances de resposta tanto para docentes indígenas como não indígenas já que não há políticas de incentivo neste sentido; a publicação de livros prevê alta pontuação, é pra chorar? Publicação de artigos, algo ainda muito longe da realidade dos profissionais de educação como um todo. A soma destes itens corresponde a 6,50, resta a possibilidade de conseguir algo com os registros de cursos de atualização, cujo valor é de 3,50 e olhe lá...

A titulação exigida para os docentes de Nível B, também é dramática: juntando as exigências de titulações stricto sensu (mestrado e doutorado) como lato sensu (especialização), além da publicação de livros, isso aí já fecha em 8,10, evidenciando também uma altíssima pontuação que explicita mais uma vez distanciamento do contexto educacional indígena do estado, que só recentemente graduou sua primeira turma de docentes indígenas. Já os cursos de aperfeiçoamento e a participação em eventos, bem como publicação de artigos pela própria vivencia acadêmica são situações em que os professores e professoras indígenas apresentam mais condições de responder entretanto estes itens valem míseros 1, 90 pontos.

Há outras questões que certamente irão aparecer como as possíveis inscrições de “brancos” para os cargos de Sabedores Indígenas, ou de inscrição de indígenas jovens para este cargo que não atende o perfil exigido que é o de profundo conhecedor da cultura com base no acúmulo de saberes possibilitado pela própria experiência. Enfim, como primeiro experimento, há necessidade de ajustes. No entanto, boa parte destes destas questões poderiam ter sido vistas se tivesse acontecido um pouco mais de diálogo.

Portanto, a realização do concurso público para os profissionais da educação escolar indígena – docentes, sabedores e técnicos, apesar da demora, ainda é algo para se alegrar, entretanto é preciso, ao deflagrar um processo como este, insistir no diálogo com os principais interessados, consultar os Povos Indígenas, seus representantes e os órgãos que atuam com as etnias com vistas a  corrigir distorções, fazer os ajustes necessários com vistas a aperfeiçoar cada vez mais este recente processo de regularização da carreira do magistério docente indígena do estado de Rondônia.

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