Domingo, 29 de novembro de 2015 - 09h13
Por Humberto Pinho da Silva
Recostada na cadeira de trabalho, em contraluz, diante da camila, revestida de toalhinha cor de canela, que tapa a braseira de cobre – onde em frias tardes de Inverno, ardem brasas rubras, – a zelosa mãe, de agulha na mão, acerta os calções vermelhos, da filha amada.
Pelas extensas vidraças, viradas para a cidadela, penetra leve claridade, envolvendo tudo numa doce e deliciosa paz.
Luz desmaiada de fim de tarde de Verão. Lá fora, o céu azul, acarminas- se, esmorecendo lentamente, em violeta – sanguínea e luminosa poalha doirada.
Silêncio.
A pequena salinha adormece em doce penumbra. Tudo se desvanece num misterioso encantamento: o aparelho de TV; o armário, pintado de branco, arrimado ao fundo; a toalhinha cor de canela, a mãe; os calções encarnados…Tudo se esvanece, esfuma-se, perdido na luz acolhedora, de entardecer calmoso.
Vem da cozinha, intensamente iluminada, tilintar de vidros e metais; e paira no ar, adocicado e delicioso odor a chocolate. É a filha mais velha que tem o bolo no forno.
De súbito o repousante silêncio – convidativo à sonolência, – é rasgado por harmoniosa voz juvenil:
-“ Mãe!!! … Como se faz chantilly?”
Um sorriso de bondade aflora nos lábios finos da progenitora.
Depõe os calções encarnados, mais a agulha, sobre a mesa, e lançando meigo olhar para a filha – que de mangas arregaçadas, no limiar da porta, aguarda a esperada resposta, – diz:
- “Mistura manteiga com açúcar e bate muito bem…muito bem…muito bem…Depois…”
Afobada, de braços balanceando, boca a transbordar sorrisos chilreantes, olhos vivos, espertos, luzindo de felicidade, entra a caçulinha, em grande estardalhaço.
Beija de fugida a mãe; abraça-a afectuosamente, como querendo dizer: - “ Gosto muito de ti! …”
Espicaçada pela curiosidade, aos saltinhos, quase pardalita travessa, a menininha interroga, ansiosamente a mana querida:
- “O que estás a fazer?!”
Ninguém lhe responde….
Amuada, despeitada, triste, de olhos fixos no vácuo, fica pensativa, a folhear velho caderno escolar, de capa azul, de folhas enodoadas, por muito ter sido manuseado.
Pela escancarada porta de vidro da varanda, entra, trazido pela brisa morna, à mistura com ruídos da rua: guinchos infantis e risos festivos de crianças. São os filhos do doutor ou do Major?
Ao longe, muito ao longe, galos de voz esganiçada, anunciam que são horas de recolher….
A salinha, agora, é quase trevas. Na semi-escuridão reluzem, na carinha morena, os luminosos olhos castanhos da meiga garotinha, que permanecem parados, tristes e meditativos.
Por arte mágica, de repente, tudo ganha brilhos e rebrilhos e nítidos contornos. Foi a mãe, que vindo da cozinha, acendeu as lâmpadas.
-“ Vamos provar?” – Diz, como se a convidasse.
Nesse comenos, toca a campainha. Quem será?!
É a D. Flora, professora, amiga da dona de casa.
Dá repenicados beijinhos à menina e à mãe, e atira, com quatro dedos rechonchudos, beijos à que anda à volta com o bolo, que rescende.
Conta novidades: casamento da Néné; maroteiras do filho do Dr. Bento; a lotaria premiada, vendida na Praça da Sé…
- “Vem menina! …Vem provar!” – Insiste, mais uma vez, a mãe, explicando, à visita, que vão a banhos para Foz de Arelho.
Encolhida, envergonhada, enleada, de faces rosadas, avizinha-se; e esta sem reparar no rosto anacarado de acanhamento, levanta-lhe a vaporosa saia, deixando as calcinhas cor-de-rosa, à vista e a perna nua.
Constrangida, humilhada, por se ver descomposta diante de estranhos, a pequenita fica a balancear: a brincar com os dedos das mãos…Com os dedos dos pés…Acariciando os macios cabelos castanhos de reflexos doirados; mas as maçãzinhas do rosto, enrubescem-se de pejo.
A mãe é mãe. Não é “gente”. Despir-se diante dela, é normal…mas na frente de visitas…
Indiferente ao comportamento da filha, nem repara no acanhamento, e continua a conversar – num cavaquear de amigas.
Este quadro familiar, tão simples, tão singelo, tão sem importância, não seria merecedor de registo, senão fosse o embaraço da mocinha.
Os pais, por vezes, esquecem-se que os filhos cresceram…Deixaram de ser garotinhos.
Há mães que pedem a empregadas para darem banho aos filhos, e vestem-nos diante de amigas. Olvidando que o pudor das crianças deve ser respeitado.
A cena que vos trago, ocorreu há muito e muitos anos, quando os meninos e meninas eram recatados.
Agora, o pudor, parece estar a desaparecer…
O “progresso” deve-se, em parte, ao: ensino misto, à liberdade paterna e mormente à nefasta influência do cinema e TV.
Essa á vontade, por si, não é má nem boa. Mau é quando descamba em libertinagem e desrespeito pelo corpo.
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