Segunda-feira, 11 de agosto de 2014 - 05h50
Cardeal Orani João Tempesta
Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ)
Os fiéis católicos são livres para agir no campo temporal dentro do qual se insere a política, optando por diferentes formas de governo ou partidos políticos. Todavia, não lhes é lícito subtrair-se aos princípios da Doutrina (ou Ensino) Social da Igreja, cujos fundamentos estão na Lei Natural Moral e na Divina Revelação, contida na Escritura e na Tradição interpretadas pelo Magistério da Igreja. É o que explicita a Nota Doutrinal da Congregação para a Doutrina da Fé.
Tal postura, por si, não trata “de ‘valores confessionais’, uma vez que tais exigências éticas radicam-se no ser humano e pertencem à Lei Natural Moral. Não supõe, da parte de quem as defende, a profissão de fé cristã, embora a doutrina da Igreja as confirme e tutele, sempre e em toda a parte, como um serviço desinteressado à verdade sobre o homem e ao bem comum das sociedades civis. Não se pode, por outro lado, negar que a política deve também regular-se por princípios que têm um valor próprio, precisamente por estarem ao serviço da dignidade da pessoa e do verdadeiro progresso humano”.
Isso nada tem a ver com a separação entre Igreja e Estado, de modo que cada um cuide de suas obrigações, em harmonia e sem litígios. Essa separação deixa bem claro que a organização da Igreja não deve ser obstaculizada ou dificultada pelo Estado enquanto este não professa nenhuma religião oficial. Mesmo separado da Igreja, “é a questão do direito-dever dos cidadãos católicos, aliás, como de todos os demais cidadãos, de procurar sinceramente a verdade e promover e defender com meios lícitos as verdades morais relativas à vida social, à justiça, à liberdade, ao respeito da vida e dos outros direitos da pessoa. O fato de algumas destas verdades serem também ensinadas pela Igreja não diminui a legitimidade civil e a ‘laicidade’ do empenho dos que com elas se identificam, independentemente do papel que a busca racional e a confirmação ditada pela fé tenham tido no seu reconhecimento por parte de cada cidadão”.
Aos que se refugiam na monótona repetição e uma falsa interpretação de que o Estado é laico, devemos lembrar que “a ‘laicidade’, de fato, significa, em primeiro lugar, a atitude de quem respeita as verdades resultantes do conhecimento natural que se tem do homem que vive em sociedade, mesmo que essas verdades sejam contemporaneamente ensinadas por uma religião específica, pois a verdade é uma só. Seria um erro confundir a justa autonomia, que os católicos devem assumir em política, com a reivindicação de um princípio que prescinde do ensinamento moral e social da Igreja”, cujos preceitos não são de intromissão no governo de cada país, mas de dever moral e de coerência aos leigos católicos que atuam na vida política.
E mais: “Nas sociedades democráticas todas as propostas são discutidas e avaliadas livremente. Aquele que, em nome do respeito da consciência individual, visse no dever moral dos cristãos de ser coerentes com a própria consciência um sinal para desqualificá-los politicamente, negando a sua legitimidade de agir em política de acordo com as próprias convicções relativas ao bem comum, cairia numa espécie de intolerante laicismo. Com tal perspectiva, pretende-se negar não só qualquer relevância política e cultural da fé cristã, mas até a própria possibilidade de uma ética natural”, contrariando a própria razão humana que prescinde da fé.
“Se assim fosse – reafirma o Documento da Santa Sé – abrir-se-ia caminho a uma anarquia moral, que nada e nunca teria a ver com qualquer forma de legítimo pluralismo. A prepotência do mais forte sobre o fraco seria a consequência lógica de tal impostação. Aliás, a marginalização do Cristianismo não poderia ajudar ao projeto de uma sociedade futura e à concórdia entre os povos; seria, pelo contrário, uma ameaça para os próprios fundamentos espirituais e culturais da civilização (cf. São João Paulo II, Discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé, in: L’Osservatore Romano, 11 de Janeiro de 2002)”.
Em tais pontos, os fiéis devem permanecer unidos em torno das seguras orientações da Mãe Igreja sem causar confusão entre seus irmãos e irmãs como alguns que, segundo a Nota da Santa Sé, mesmo sendo membros de instituições de inspiração católica, pregam e agem contra a moral cristã. Ao lado destes, que se dizem de dentro da Igreja, se juntam os meios de comunicação social que, por ignorância ou má-fé, promovem ambiguidades quanto ao pensamento católico em termo de política.
Frente a esses desvios, o fiel é chamado, por coerência, a apresentar o rico patrimônio moral cristão à humanidade sem se sentir inferiorizado por sua fé. Ao contrário, deve se sentir feliz por testemunhar ao mundo a verdade, que é o próprio Cristo Jesus (cf. Jo 14,6), pois nenhuma filosofia pode, depois dos anos que se sucederam à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), se dizer infalível e, por isso, julgar os católicos como cidadãos de segunda classe, como, às vezes, se tenta fazer.
Não se entenda com isso que a fé é maniatadora do ser humano. Ela lhe dá liberdade de escolhas sem coação, mas, em contrapartida, ninguém deve entender tal liberdade (na realidade, libertinismo) como se fosse uma salada indigesta capaz de igualar o bem ao mal, a verdade ao erro, o certo ao incerto etc. Por isso, o Papa Paulo VI afirmou que “o Concílio, de modo nenhum, funda um tal direito à liberdade religiosa sobre o fato de que todas as religiões e todas as doutrinas, mesmo errôneas, tenham um valor mais ou menos igual; funda-o, invés, sobre a dignidade da pessoa humana, que exige que não se a submeta a constrições exteriores, tendentes a coartar a consciência na procura da verdadeira religião e na adesão à mesma” (Discurso ao Sacro Colégio e aos Prelados Romanos, in: Insegnamenti di Paolo VI, 14 (1976) 1088-1089).
Eis porque um católico coerente com sua consciência moral, e até psicológica, não pode se dizer ao mesmo tempo cristão e propagar, filiar-se ou defender programas contrários à dignidade humana, como são o aborto e a eutanásia, por exemplo, nem os ataques mais variados à família, célula-mãe de toda sociedade organicamente constituída. Fiquemos, pois, atentos!
A título de conclusão, o importante Documento da Congregação para a Doutrina da Fé deixa claro o seguinte: “As orientações contidas na presente Nota entendem iluminar um dos mais importantes aspectos da unidade de vida do cristão: a coerência entre a fé e a vida, entre o Evangelho e a cultura, recomendada pelo Concílio Vaticano II. Este exorta os fiéis ‘a cumprirem fielmente os seus deveres temporais, deixando-se conduzir pelo espírito do Evangelho. Afastam-se da verdade aqueles que – pretextando que não temos aqui cidade permanente, pois demandamos a futura – creem poder, por isso mesmo, descurar as suas tarefas temporais, sem se darem conta de que a própria fé, de acordo com a vocação de cada um, os obriga a um mais perfeito cumprimento delas’. Queiram os fiéis ‘poder exercer as suas atividades terrenas, unindo numa síntese vital todos os esforços humanos, familiares, profissionais, científicos e técnicos, com os valores religiosos, sob cuja altíssima hierarquia tudo coopera para a glória de Deus” (Gaudium et spes, n. 43; cfr. também São João Paulo II, Exort. Apost.Christifideles laici, n. 59).
Possam essas nossas reflexões, à luz da Nota Doutrinal da Congregação para a Doutrina da Fé, servir de parâmetro na orientação de todos quantos se acham confusos ante as tantas correntes de pensamentos sócio-políticos que nos são apresentadas, quase diariamente, pelos mais diversos meios de comunicação.
Que o Senhor Jesus, Rei do Universo, por intercessão da Virgem Mãe Aparecida, ajude o nosso sofrido povo brasileiro, hoje e sempre. Amém!
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