Domingo, 4 de novembro de 2012 - 06h11
por Marli Gonçalves
Quanto mais quente, melhor? Nem sempre. Alguma coisa parece estar fora da ordem e o calor não é mais aquele, só gostoso, de vontade de pegar uma praia, tomar cerveja, se lambuzar de sorvete. É estafante, diminui qualquer vontade e arrasa qualquer lógica; faz acreditar e delirar até que só a gente está tendo aquela sensação horrorosa, certa paranóia. E os acontecimentos não param de chegar: más notícias mundiais, medos e ameaças, previsões catastróficas e a maldita realidade esquentando nossas orelhas, até com caçadas humanas
Parece que estamos derretendo e o verão ainda nem chegou. O ar rarefeito e seco embota os pensamentos, e é muito difícil trabalhar pensando, com alguma atividade intelectual, necessitando de ideias e criatividade nesses dias em que a coisa pega pesado, que o tempo esquenta tanto que a gente acha que vai fritar que nem bolinho. E se nem pensar dá, imagine quem tem de fazer esforços físicos, braçais. Nesse tempo quente, tudo esquenta, a cabeça esquenta, e certamente sobe o índice de agressões e desentendimentos e desinteligências que ocorrem por aí porque ficamos muito mais irritados quando as roupas grudam no corpo e você sua, pinga, e ainda vem alguém lhe pagar um sapo, ou tentando lhe dar uma volta.
O calor que faz é quase selvagem. Não é civilizado, diz um amigo.
Penso imediatamente - no caso, pela nudez permitida - nos índios que, inclusive, também estão na ordem do dia, principalmente uma tribo guarani-caiowaa que conseguiu passar uma angústia enorme para a elite brasileira ao prometer lutar até o fim pela permanência em terras onde chegaram e se instalaram, vizinhos de uma usina que não faz qualquer questão desses vizinhos. Logo, pela internet, lutar até o fim acabou virando rapidamente ameaça de suicídio coletivo e aí foi o Deus-dará.
Do dia quente para a noite quente também, muita gente virou índio, trocou de nome na internet; os índios viraram a bola da vez de um certo delírio social e solidário coletivo, comoção nacional, razão pelo que se condoer, junto com furacões e super tempestades para assistir na tevê, pensando que, puxa, olha só, lá eles também têm desgraças. A água também traz enchentes. Árvores também caem. Mas repara só como muito menos pessoas morrem na desgraça. Porque há previsão, comunicação a tempo, serviços que funcionam, ordens que são cumpridas por todos. Há solidariedade. Um certo governo. Consciência de coletivo.
Depois de refrescar o pensamento com a nudez indígena, penso novamente no calor. E vem à mente os uniformes e fardas que, inclusive, mais do que quentes, tornaram-se roupas muito perigosas ao serem usadas nas ruas de São Paulo e arredores, onde parecem estar virando mira de tiro ao alvo. Todos os dias vários policiais são mortos ou emboscados. No seguinte, o revide, e mais mortes, para o outro lado. Bang-bang mesmo. Boatos e toques de recolher se espalham pela cidade, tornando-a uma verdadeira fogueira. Brasa viva, porque não se sabe para onde ir ou não ir. Zona de guerra urbana.
Só que essa guerra, sabe-se por que, de onde vem, como foi iniciada a sua formação e a organização do comando, ano após ano de negativas de autoridades do que ocorria em suas barbas. E essa organização de três letras que esquenta e sopra as orelhas do Estado e toda sua força policial não é mequetrefe. Rica e bem engendrada, suas raízes devem estar incrustadas crescendo de alguma forma invisível, para surgir quebrando a calçada e derrubando muros, tal como as seringueiras. Invisíveis e podres poderes. Porque o que vemos são apenas os seus soldadinhos bem rasos, esquálidos e bem jovens, sendo carregados mortos em rabecões ou vivos em camburões, onde são jogados invariavelmente com uma camiseta suja, uma bermudinha velha e sandália de dedo. São bucha de canhão, carne de segunda.
Essa coisa é muito maior e mais malévola do que se possa crer. Não é mesmo igual às organizações que nasceram e se criaram no Rio de Janeiro, mas ainda por cima parece evidente que parte dos enxotados de lá vieram para cá e entregaram seus curriculuns criminosos e de comportamento antissocial para serem aceitos e aqui protegidos. Tipo troca de passe.
É um novo cangaço que surge. O calor se espalha. E ainda há bateboca e dizquedizque de política com secretário boca mole, ministro metido, governador insípido e presidente gostando de beija-mão, adulação, para poder fazer cara de brava. Enquanto isso os índices sobem, inclusive os de custo de vida, e os de números de caçadas e mortes estúpidas.
O couro comendo aqui fora. O verão ainda vai chegar. Calor demais. Melhor desamarrar o nó da gravata.
São Paulo, frenesi de sirenes ligadas, 2012
Marli Gonçalves é jornalista - Leque virou acessório indispensável para viver no barril de pólvora com fósforo por perto.
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