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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Ensaio sobre a Forma-Estado no Brasil contemporâneo


Ensaio sobre a Forma-Estado no Brasil contemporâneo - Gente de Opinião

-- Viva a democracia!

-- O Fascismo não passará!!



Vinício Carrilho Martinez – Doutor em Ciências Sociais/UNESP

Tainá Reis – Doutora em Sociologia/UFSCar

 

Por mais que reviremos as instituições políticas, quando falamos do Estado brasileiro teimam em aflorar o que há de pior na nossa formação social, a exemplo da rejeição institucional aos pobres: o Brasil não “trata” (aborda a pobreza e a miséria social), o país distrata seu povo, os mais pobres e desassistidos. Isso é uma recorrência histórica[1].

Desse modo, para entender o Estado contemporâneo brasileiro é preciso retomar o passado - como boa parte das teorias críticas nos ensina, o presente é uma elaboração histórica contínua - ou, em alguns casos, uma permanência travestida de novidade. O Brasil do século XXI é herdeiro de estruturas coloniais profundamente desiguais e violentas. O Estado, como instituição das instituições, espelha e reforça essa história.

O modelo de Estado que nos forma e nos governa está ancorado em um passado colonial escravocrata, patriarcal e racializado. Nos tempos da Plantation, com o latifúndio agroexportador, o poder estatal já se configurava como mantenedor da dominação de uma elite econômica e social – atualmente, sem mais a Plantation, mas com as commodities, quanto mudou? Essa elite, branca, masculina e proprietária, tanto detinha os meios de produção como também influenciou as normas jurídicas, os valores e o funcionamento da própria máquina estatal. O Estado foi (e ainda é) agente ativo na construção de desigualdades estruturais.

Tratar de tema tão vasto como o Estado, as formas políticas historicamente construídas, é sempre um desafio – é amplo e aprazível ao retomar a história política, porém, pode se esvaziar em conceitos que requerem um grande aporte de precisão e de aprofundamento. No entanto, as formas políticas atribuídas ao Estado sempre nos explicam muito do que somos (ou não), do que poderíamos ser. Quantas relações poderiam ser estabelecidas entre as formas políticas no extenso rol da história?

·       Estado antigo (ou Estado gregário)

·       Estado funcionalista

·       Estado liberal

·       Estado de direito republicano

·       Estado federal (ou federativo)

·       Estado Legal (séculos depois do Estado Livre)

·       Estado democrático

·       Estado Social (México)

·       O Estado-força (o não-Estado)

·       Estado de Bem Estar Social – capitalismo monopolista de Estado

·       Estado de direito político:


Até o nosso Estado Democrático de Direito Social (Martinez, 2013)

Em razão da necessidade de se manter a objetividade, é importante destacar uma súmula quanto à forma política do chamado Estado Moderno, que é este que nos compete. Por este resumo cabe dizer que o Estado é a instituição das instituições, a instituição capaz de normatizar, normalizar as demais construções institucionais; como instituição reguladora, o Estado reúne o poder da heteronomia e da soberania (restando às outras instituições uma possibilidade de autonomia – sendo esta residual).

Para que isto assim se afirme, o Estado moderno mantém em unidade constitucional três das mais essenciais categorias – quais sejam: o povo, o território e a mesma aludida soberania. Daí provém a heteronomia ou o monopólio do exercício do uso legítimo da força física, bem como o monopólio legislativo – por exemplo, quando se afirma a segurança jurídica em substituição à vingança privada. Na bandeira do Estado Constitucional – com todas essas funções reguladas por uma Constituição (promulgada ou outorgada), a modernidade se apresenta na forma do Estado de Direito, com algumas condições elementares: a divisão dos poderes, o Império da Lei, a prevalência dos direitos fundamentais.

 

Autocracia política (plutocracia)

Depois de uma breve exposição sobre as formas políticas do Estado, num sentido mais histórico e universal (pelo Ocidente), destaca-se a autocracia burguesa de Florestan Fernandes: tão visível no mercado financista da Faria Lima que, hoje, o faria colocar outros adjetivos.

Vemos esse fato como uma revolução burguesa pela metade, com um Estado de direito que não apenas serve às "elites" (no Brasil: oclocracia), que não apenas é racista (na prática, não na Constituição de 1988), como ainda reproduz (fora, distante, do Estado Democrático de Direito) a realidade excludente (repleta de exceções e privilégios de "casta": Judiciário) e que sempre performou o Estado patriarcal, colonial, cartorial.

A tardia e incompleta abolição do regime escravocrata em 1888 não significou uma ruptura com a lógica do domínio senhorial. A promulgação da Lei de Terras, em 1850, operou um dos mais claros exemplos do Estado enquanto mantenedor de privilégios: a terra se converteu em mercadoria, o que impediu que ex-escravizados e imigrantes pobres acessassem a propriedade rural. Com tal medida, enquanto força de trabalho livre, permaneceram dependentes dos antigos senhores, que, assim, permaneceram no topo da pirâmide social. Assim, a modernização da legislação fundiária operou uma atualização da dominação, não sua superação.

Esse padrão se mantém no presente: a blindagem jurídica das elites econômicas, a aliança entre o Estado e o agronegócio e a seletividade penal evidenciam que o Estado brasileiro permanece legislando para uma classe específica. Elevado quase a uma condição de casta, o Judiciário age de modo desigual: severo com os pobres, leniente com os privilegiados. Nesse quadro se insere o conceito de autocracia burguesa, conforme formulado por Florestan Fernandes —que hoje pode facilmente ser compreendido como um Estado capturado por interesses financistas, marcado por práticas oclocráticas e plutocráticas.

O que ainda nos assegura alguma "excepcionalidade" (discriminação positiva) são os direitos fundamentais - no que restou da Constituição de 1988 sem ser corrompida pelo neoliberalismo, neocolonialismo e pelo Estado Paralelo (entre a corrupção e o crime organizado). Portanto, se fizemos a tal revolução burguesa, nós a fizemos sem a eficácia do Estado de direito – mormente se considerarmos que o conceito exige o Império da Lei, a separação dos poderes, a prevalência dos direitos fundamentais, a isonomia (Canotilho, 1999).

A separação de poderes, a garantia de direitos e liberdades, o pluralismo político e social, o direito de recurso contra abusos dos funcionários[2], a subordinação da administração à lei constitucional, a fiscalização da constitucionalidade das leis [...] a publicidade crítica, a discussão e dissensos parlamentares e políticos, a autonomia da sociedade civil (Canotilho, 1999, p. 16).

 

Porém, no âmbito das Teorias do Estado, pelo caminho das institucionalidades, o copo meio vazio indica que são bem questionáveis "nosso" Estado-Juiz e o Estado Constitucional, pois, o 8 de janeiro de 2023 e a Lava Jato são marcas d'água desse Estado sem direito, em que as "elites" mudam rapidamente seu horizonte.

A revolução colorida de 2013/4 (estimuladora do Fascismo nacional), o Golpe de Estado de 2016, o resultado da eleição de 2018, esse pacote recente, mostram apenas o arsenal de instrumentos dessa autocracia burguesa (oclocracia) nos tempos do financismo (rentismo estatal) e sob a vigilância do capitalismo de dados – das redes antissociais em que prosperam o referido Fascismo, a misoginia, o ódio social.

As elites incultas brasileiras falam em meritocracia – “o céu é o limite” –, no entanto, não olham para si mesmas.

    Meritocracia: é o governo dos que têm mais méritos, ao contrário da realidade nacional, em que prosperam os que são fortes, astutos, corruptos ou ricos. Portanto, a meritocracia que deveria ser o oposto de oclocracia (governos dos ricos) ou plutocracia (governo dos piores), no Brasil, conheceu até mesmo a corrupção do vocábulo.

 

Em outras palavras, a autocracia burguesa precisa de mais penduricalhos para se explicar em 2025, e prestar contas aos senhores da guerra civil - travada todos os dias, tão logo a gente abra a janela e veja desfilar a luta de classes prenha de Pensamento Escravista.

O Brasil, sua cultura e sociedade, o Estado brasileiro, parece exigir que façamos um rizoma – e que envolva o passado e o presente; pois, soubemos como ninguém combinar o modo de produção escravo com o capitalismo (desafiando toda a lógica dos clássicos da Teoria Social moderna) – o sistema de Plantation (escravista) era suficiente porque o mercado de consumo era somente europeu: e aí se realizava a distribuição capitalista da nossa produção em escala. Disso resultou o presente e atuante Pensamento Escravista – uma combinação entre racismo e exploração análoga ao trabalho escravo, em 2025.

Portanto, além de mentalidade arcaica, atrasada – que leva ensino religioso (em atentado ao Estado Laico: artigo 19 da CF/88[3]), militarização da escola pública (por que as elites não querem isso aos seus filhos?), educação financeira para crianças e jovens que vão à escola em troca da merenda –, temos uma base de formação social e institucional que guarda muito dos resquícios do nosso pior passado.

 

Modernidade à tardinha

Esse rizoma arcaico e pós-moderno nos trouxe, em exemplo complementar, ações recentes do Ministério da Educação com seus kits de robótica. Não é, evidentemente, uma aposta na antimodernidade, entretanto, como explicar a robótica no sertão em que as pessoas lutam para ter água potável?

Definitivamente, não teremos futuro sem acertar muitas contas com o passado. Nossa Modernidade Tardia acena com liberdade (mas é essa das proposições golpistas e nazifascistas), sem nenhum reconhecido de igualdade e muito menos de fraternidade. Ou seja, a conta da Revolução Francesa não fecha a conta neste país.

A Constituição Federal de 1988 nos presenteou com um Processo Civilizatório (artigo 215[4]), sem, no entanto, apontar as garantias necessárias à fruição dos artigos 1º, 2º, 3º e 4º. Nosso preâmbulo constitucional não desfraldou eficazmente o lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Nossa revolução burguesa foi (se foi) tecnicista, porque alavancou o capitalismo nacional na década de 1930, e autocrática – porém, tendo-se em conta o quanto nossas “elites” são atávicas, de poucas luzes iluministas (jamais libertárias). Aliás, quando vemos restos de iluminação no combate à fome e à miséria humana, as elites incultas apagam qualquer lamparina que vejam pela frente.

Nossos esforços pela construção de uma sociedade menos brutal e de um Estado efetivamente moderno, remetem à redemocratização, à Constituinte de 1985, à Constituição de 1988, às eleições de um Partido dos Trabalhadores – hoje parecido com o PRI (México) em alguns aspectos – e, no outro canto escuro da história, lembra as estrofes de uma música:

Instrumentalização do poder

- nunca é sem querer

- vem sempre para doer

 

Instrumento de dominação

- quase sempre é organização

- mas, não é bem o da emancipação

 

Instrumento policial

- uma enorme pujança

da insegurança

 

É Instrumento racial

- onde está o racional?

 

Policial,

- aliado do instrumento fabril

- nunca é gentil

 

É um extremo febril

(https://www.youtube.com/watch?v=k5hSTpW0PLM)

 

          Essa estrofe é uma entrada para rediscutirmos o Estado Penal (Wacquant, 2003) no Brasil, com seus ranços racistas e elitistas e que, obviamente, atua como observação institucional “sobre” e “para quem” se ordenou o nosso Estado de Direito – instrumento, este, sempre pronto a punir o povo pobre, negro e oprimido. A autocracia se expressa contemporaneamente de forma mais sofisticada, combinando neoliberalismo, neocolonialismo e um Estado Penal que tem no encarceramento em massa e no endurecimento das políticas de segurança formas modernas de contenção social.

De nossa parte, seguimos na luta política, que é sempre uma Luta pelo Direito – em meio à luta de classes –, procurando efetivar as garantias, as liberdades, os direitos e que estão alinhados no escopo, no bojo, do Estado Democrático de Direito Social (Martinez, 2024). Sempre na insistência de um país justo, livre e solidário – e sob o primor da emancipação e da dignidade humana (Martinez, 2025)[5].

Mas é preciso ter no horizonte: não se constrói um Estado democrático verdadeiramente inclusivo com a manutenção das estruturas que produziram a exclusão. O pensamento escravista permanece como racionalidade em nossa sociedade – racionalidade material que se concretiza em decisões políticas, econômicas e culturais.

 

Últimas considerações

Por fim, o último ponto que se desataca é o julgamento do século – sob as balizas do Estado Democrático de Direito.

Começou o julgamento do século, porque começamos a julgar o Fascismo pela Constituição de 1988 e com base em artigos do Código Penal (tentativa de golpe de Estado e atentado violento ao Estado Democrático de Direito), que, ele, o maior símbolo fascista, homologou. É uma data histórica, pela ironia que só a justiça histórica pode (algumas vezes) proporcionar.

Especialmente se observarmos as "quatro linhas" da política internacional (extrema direita global) e o nosso próprio estrato cultural. 

Não será dessa vez – como em 1964 e no looping da exceção (do AI 1 ao AI 5) – que "um cabo e um soldado" calarão o STF e a democracia ou rasgarão a Constituição. A família de Herzog esteve na primeira fila e mesmo que o réu venha a fugir, a justiça terá sido feita para os milhares de mortos por falta de vacina ou de oxigênio, durante a pandemia. O fascista não estará sendo julgado pelo crime de "genocídio iniciado", mas estará sendo julgado. Por isso, também temos que pensar/avaliar o quanto as institucionalidades do Estado Democrático de Direito foram (são) fortes, como demonstra esse julgamento em que o Fascismo se torna réu. 

Hoje é um dia para celebrarmos a democracia, a Constituição, os direitos humanos fundamentais – por nós e por todos que sucumbiram no Estado fascista. 

Realmente, o sabor da ironia da justiça histórica não tem paralelos. 

Viva a democracia!

O Fascismo não passará!!

 

 

Referências

 

CANOTILHO, J. J. G. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999.

 

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado: metamorfoses do Estado Moderno. São Paulo: Scortecci, 2013.

 

MARTINEZ, Vinício Carrilho. *Ensaio sobre o estado democrático de direito social*: concepção jurídica burguesa ou socialismo na modernidade tardia? São Carlos: Pedro & João Editores, 2024. Disponível em: https://pedroejoaoeditores.com.br/produto/ensaio-sobre-o-estado-democratico-de-direito-social-concepcao-juridica-burguesa-ou-socialismo-na-modernidade-tardia/

 

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Educação e Sociedade. São Carlos: Amazon, Ebook Kindle, 2025. Disponível em: https://a.co/d/393SyBS.

 

WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003.      



[2] Historicamente, esta é a garantia institucional atribuída à conquista do direito de petição.

[3] Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; II–recusar fé aos documentos públicos; III–criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

[4] “Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1o O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro- -brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf. Acesso em 24/03/2025.

[5] Inserimos outra música, da qual participamos: https://www.youtube.com/watch?v=vbEAiyWYDfg&list=PL0BSSWXJH_LGIPqbXazs5rPJEcBkvB0qb&index=21. Acesso em 24/03/2025. 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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