Quinta-feira, 22 de abril de 2021 - 10h57
Mosca necrófila? Mosca empática? Existe isso?
Não sei o que você está pensando sobre essas questões. Para mim, ainda
está sendo surpreendente ter que pensar nisso. Tanto que tive que escrever.
Bom, onde moro estamos em pleno inverno. Além das chuvas com seus
benefícios para a agricultura, para o abastecimento da população, para as
plantas, para os animais, para os amantes de lagoas – que se formam entre dunas
-, seus transtornos como na maioria das cidades – alagamentos -, também abre a
temporada de insetos. É isso mesmo. A chuva também é ótima para eles. Em
particular, para as moscas. O que é péssimo para os humanos.
Não são muitas, consigo até contá-las. Sorte minha. A questão é a
expertise desse maravilhoso inseto em se divertir ou trabalhar me importunando.
Raul Seixas tinha razão. Se eu matar uma vem outra em seu lugar. Indício de
consciência de revezamento.
Um pouco sobre moscas. São muitas as espécies. Vou parodiar Caetano na
música Mel. A negra, branca, de figo, mutuca de cavalo, do chifre, doméstica,
varejeira, da banana, tsé-tsé, caçadora. Tem seu lugar no mundo. Afinal, a
natureza é um sistema perfeito, nada existe sem utilidade. A finalidade benéfica
das moscas para o homem, é que podem ser utilizadas como cobaias para
experimentos científicos para melhorar a nossa capacidade de nos manter vivos.
Para a natureza, são polinizadoras, decompositora de matéria orgânica, fonte de
alimento para vários animais, predadoras de larvas de borboletas e besouros, e
no controle biológico. Há quem a use como isca.
Não seriam perfeitas se não tivesse também a sua finalidade negativa.
São transmissoras de várias doenças. Além do incômodo que provoca quando você
se concentra com uma ou várias delas. Ela perturba o seu sono. Ela “zumbiza” no
seu quarto. Pousa na sua sopa. Ela abusa de você. A sua imaginação é o limite.
Não por acaso foi imortalizada na canção Mosca na sopa, pelo já citado Rei do
Rock. Seu prestígio também foi reconhecido por Hollywood. Ganhou a telona,
agora no streaming, com o filme A mosca [The fly, USA, 1986, de David
Cronenberg].
William Blake, poeta inglês se rendeu aos encantos ou aos desencantos da
nossa personagem. Escreveu o poema A mosca: “Pequena mosca, / com minha mão /
bruta, / cortei / teu jogo vão. / Não serei, mosca, / um igual teu? / Ou não és
tu / homem, como eu? / Pois amo a dança, / canções, bebida, / até que a mão
cega / me corta a vida. / Porque danço / e bebo, e canto / até que alguma mão
cega / me arranque a asa. / Se o pensamento é vida, / fortaleza e alento; / e a
ausência / de pensamento é morte; / então eu sou / uma mosca feliz, / se vivo,
ou se morro.
Não posso deixar de reconhecer que ela tem seus méritos.
É claro que a minha relação com as moscas não é de hoje. Sempre
experiências negativas. Estou no mundo e no mundo há moscas. Não há como evitar
esses encontros.
Tornou-se um... como direi... esporte, caçá-las. Isso me fez prestar
atenção nessas criaturinhas fascinantes. Primeiro utilizei raquetes. Funciona,
mas não é prática. É grande. Não me adaptei. Adotei o velho pedaço de tecido em
forma de toalha. O que exigiu outra estratégia, com a qual me adaptei
rapidamente. Mais dinâmica porque não necessita de muito espaço, já que o
movimento é vertical. Ainda não sou um exímio matador de moscas. Creio que
entre dez, consigo livrar o mundo de cinco. Uma boa média. Reconheço.
O que me faz chamar as moscas de fascinantes é sua velocidade e
percepção e ainda a dureza. Passei a acreditar que ela tem mais vidas do que um
gato. Como é resistente. Não é fácil levá-las ao final da vida antes do prazo
natural. Ela consegue iniciar um voo já na velocidade máxima. O Porsche 911
Turbo S, consegue chegar a 100 km em 2,7 s. É considerado um dos carros mais
rápidos do mundo. Tenho a impressão que uma mosca já decola na velocidade
máxima. Não há tempo entre zero e a velocidade máxima. Seria como decolar a 100
km. Não há tempo de resposta. Ou seja, ao perceber o perigo – ela simplesmente
sai debaixo da toalha a meio centímetro [eu acho] de distância, a 100 por hora.
Mesmo dopado, o recordista dos 100 metros rasos de 2002, o americano Tim
Montgomery, com tempo de 9,78, teve um tempo de reação de 0,104. É esse número
que interessa. É o menor já registrado. Trata-se do tempo que o atleta leva
para iniciar a corrida após ouvir o tiro de largada. O recorde de Montgomery
foi devidamente anulado. O recordista atual é Usain Bolt, com a marca de
9,58s. O tempo de reação dele não é dos melhores, 0,146. O forte dele é quando
ganha velocidade durante a corrida. Certamente perdem para o tempo de reação
das moscas. Creio que seja impossível medir seu tempo de reação. As que consigo
matar, certamente estavam distraídas. Ou ainda estariam vivas.
Outra coisa que percebi nas moscas é sua capacidade de acasalamento em
alta velocidade em pequenos espaços, como é o do meu escritório. Fazem manobras
espetaculares embaixo da mesa. Também creio que não haja transa mais veloz. A
sincronia delas não tem como não impressionar. As manobras são bruscas. São
capazes de virar para a esquerda, por exemplo, depois para a direita antes de
percorrer um centímetro, sem sair de cima da parceira ou parceiro. Manobram
para os lados, para cima e para baixo, na diagonal como se estivessem voando em
linha reta. Sem perder velocidade. Parecem fazer curvas em 90º ou até menos,
como uma manobra do Gabriel Medina na crista de uma onda. Só que muito mais
rápido. Observe e tire suas próprias conclusões.
Agora vamos tratar do título deste texto. Hoje pela manhã, estava no
escritório. E como sempre, recebi as visitas ilustres das mosquinhas. Nunca
aparecem mais que três ou quatro. Mas é o suficiente para parar e caçá-las. Ou
não consigo trabalhar. Já pensei em ignorá-las quando pousam e levantam
inquietamente em mim. Até já consegui algumas vezes. Se treinar mais
conseguiria ignorá-las. Mas lembro que elas são transmissoras de doenças e a
caçada começa. O que, em certa medida, é muito divertido. Nessa luta fica clara
a peleja entre a lentidão total e a rapidez total. Quando consigo matar alguma
encaro como vitória, mas não garante que da próxima vez consiga novamente. Elas
são muito mais espertas do que eu. Lembro da cena do filme Karatê Kid, na qual
Daniel San, pega uma mosca com hashi [palitinhos japoneses usados para comer].
Kesuke Miyagi, está sentado à mesa, na sala de sua casa, com seu hashi tentando
pegar uma mosca em pleno voo. Daniel San chega, observa, senta-se à mesa e
indaga: “Com mata-moscas não seria mais fácil?” Seu mestre responde: “Homem que
mata mosca com pauzinhos realiza qualquer coisa.” San faz nova pergunta: “Já
pegou uma?” “Ainda não.” Foi a resposta. Daniel pede para tentar. Senhor
Miyagi, sorri com o canto da boca, e responde “Se deseja...”. Daniel pega seus
pauzinhos e na terceira tentativa consegue pegar a mosca. Kesuke olha-o com os
olhos um pouco arregalados, ironiza novamente, levanta-se da mesa e exclama:
“Você... sorte de principiante”.
O curioso nessa cena é que a mosca parece desafiá-los. Está lá se
divertindo se livrando dos pauzinhos. Lembrei-me de quando como o Anderson
Silva quando perdeu para Chris Weidman. Parou de lutar e passou apenas a se
esquivar dos socos do desafiante. Estava se divertindo, parou de lutar. Até
que... o resto é história.
Uma das coisas que aconteceram hoje é um pouco parecida com essa cena.
Uma mosca sentou sobre o meu caderno, em uma posição muito favorável. Distância
perfeita. Nem precisei me levantar. Peguei a toalha. Me posicionei e ataquei.
Como sempre, a mosca saiu debaixo da toalha no último milésimo de segundo para
ser atingida. E deu meia volta antes de completar 10 centímetros de distância e
voltou para o mesmo lugar. Ataquei novamente. A cena se repetiu, por mais
incrível que pareça, por quatro vezes. Voou zombando de mim e não voltou mais.
Agora a cena mais impressionante.
Humilhado pela mosca, decidi me vingar em outras. Matei a primeira. Caiu
ao lado direito da mesa, embaixo da mesinha do ventilador. Vibrei. Apareceu
outra desafiante. Matei também. Só que a segunda mosca caiu praticamente no
mesmo lugar da segunda. Satisfeito e vingado, voltei aos meus escritos.
Em um dado momento, olhei para as moscas mortas. O que vi foi
inacreditável. Uma terceira mosca apareceu e protagonizou uma cena que não sei
dizer se trata-se de necrofilia ou empatia. A mosca, freneticamente, pousava
sobre as outras duas, alternadamente, em posição de acasalamento. Saía de cima
de uma e ia para outra na velocidade de sempre. Fiquei impressionado. Chegou
até confundir uma sujeira com uma mosca. Até que se acomodou sobre uma e ficou.
Não sei dizer se se tratava de acasalamento com cadáveres ou comoção por
encontrá-las mortas. Seriam amigas? Seriam amantes? A mosca parecia pedir
reação.
Fui para internet pesquisar sobre necrofilia e empatia entre insetos.
Não encontrei nada. Se alguém souber algo sobre isso, gostaria de tomar
conhecimento. Ficaria muito grato por isso. Por outro lado, descobri que alguns
animais, além de humanos, praticam necrofilia. A empatia entre animais em casos
de morte ou ferimento ou mesmo de perigo já é conhecida. Mas necrofilia foi
novidade para mim.
Assim, para a minha surpresa, descobri que corvos, cangurus, patos,
sapos, pinguins, leões marinhos, lagartos teiús, saguis, lontras e golfinhos,
já foram flagrados nessa prática. Da lista, que já é impressionante, o corvo,
por ser uma ave, me causou mais impacto. Isso porque além de acasalar com os da
mesma espécie, já foram observados praticando necrofilia com pombo, ou, com
outra espécie.
Assim, considerando que há registros de necrofilia no reino não humano,
posso inferir, mesmo com mínimas dúvidas, que presenciei um caso de necrofilia
entre as moscas. No caso, necrofilia múltipla, duas sem vida, diga-se.
Para o caso das moscas, pode haver uma explicação muito interessante.
Segunda uma nova pesquisa conduzida por cientistas americanos
descobriu-se que a falta de sexo prejudica a saúde e causa a morte prematura
das moscas de fruta. Assim, a falta de sexo pode reduzir em até 40% a
vida de uma mosca. O tempo de vida de uma mosca é entre 15 a 30 dias.
Ah, o nome correto para esses casos é “comportamento sexual
interespecífico”.
A natureza e seus inesgotáveis segredos.
Fontes de apoio técnico:
10 casos de necrofilia observados em animais fofos
- https://noticias.ambientebrasil.com.br/clipping/2018/07/25/144971-10-casos-de-necrofilia-observados-em-animais-fofos.html –
acessado em 07/04/2021, às 15h05min.
Moscas que acasalam menos morrem mais cedo, diz estudo
- https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/12/131129_moscas_falta_sexo_expectativa_vida_lgb
- acessado em 20/04/2021, às 14h50min.
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