Domingo, 18 de dezembro de 2022 - 07h20
Para mim vai ser sempre assim. Carlinhos. Muitos o chamavam só assim; outros desavisados bem que não entendiam como é que aquele gigante gentil podia ter seu nome conhecido no diminutivo. Mas nós que com ele convivemos bem, sabemos. Era um crianção, sempre com a aguçada inteligência acima da média unida a um humor mordaz, precisão e memória implacável. Senta que lá vem história!
Carlos Brickmann nos
deixou. Me deixou. Amigo há 45 anos, e com quem trabalho há 30 anos, vocês
conseguem imaginar como estou me sentindo? De antemão, aviso: este texto será
todo em primeira pessoa. Sou eu que estou falando dele, da dor de sua perda, de
um tudo que significou para mim e para a história da imprensa nacional. Afinal,
convenhamos: 30 anos dos quais 27 em convivência diária não é para qualquer um.
Tocávamos de ouvido, como se fala em orquestras; à distância; perto, por um
olhar, uma sacudida de cabeça, uma “dormida” em pé rápida que dava quando
fechava por instantes os olhos matreiros, eu podia com toda a certeza acertar o
que estava pensando. Era difícil um dia em que eu não aprendesse algo, daquelas
coisas que só ele sabia, lembrava, ou mesmo tinha acompanhado ou estado lá nos
seus 59 anos de profissão, vejam só que beleza!
Não era bom fisionomista,
mas era capaz de lembrar em detalhes cada frase sussurrada ao seu ouvido tenha
sido por Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, Jânio, Montoro, Quércia, Paulo
Maluf, Kassab, uns ou qualquer outro político com o qual tenha estado. Todos o
respeitavam e admiravam muito suas observações – um ás da comunicação e
marketing político de campanhas. Fato é que – daquelas formas idiotas dos
burros pensarem, se é que pensam – pregaram nele um adjetivo, “malufista”. Ah,
mas não era mesmo! Era apenas um vitorioso, para vocês verem que naquela época
ele conseguiu melhorar até a imagem do Paulo Maluf, e isso não é pouco. Carlinhos
era um profissional como muitos poucos, destes que a gente anda procurando sem
encontrar, como agulha no palheiro. Dava de ombros ao ouvir isso, ser chamado,
xingado, de malufista. Mas eu digo que por conta dessa pecha perdeu amigos (se
bem que amigos não deviam ser) e clientes. Uns não o contratavam porque seria
malufista; outros, os mais malufistas, digamos assim, não o contratavam porque
seria amigo do “chefe”, não queriam desagradá-lo.
Bobagem. Entre as
amizades, a gama do arco do pensamento democrático, políticos de quem espero
lhe rendam devidas homenagens. José Dirceu, Genoíno, outros muitos do PT e
partidos de esquerda; Haroldo Lima, que perdemos com covid, do PC do B, o
adorava, impressionado sempre com a firmeza de suas críticas. Lula, não, que
ele nunca foi muito chegado. Implicava mesmo - e aí tínhamos um divertido
embate, porque nunca descobri exatamente por causa do quê – era com a Luiza
Erundina, com quem eu tenho forte amizade e calorosa consideração (sou
Marlizinha para ela, desde que fui a primeira jornalista a entrevistá-la quando
eleita vereadora, seu primeiro cargo público, há 40 anos atrás).
Carlinhos enfrentou
generais na ditadura, despistou policiais e protegeu perseguidos políticos,
buscou justiça pelo primo Chael, assassinado torturado. Gostava demais de
lembrar que da montanha de processos que enfrentou com as verdades de suas
colunas nos principais jornais, nunca foi o PT a lhe processar. Já o PSDB... E
vou dizer mais: político esperto não gostaria de estar no alvo dele, que o diga
um certo secretário de segurança de grande queixo com quem duelou por meses.
Carlinhos adorava o chamar de gordo, queixudo, e o que mais lembrasse,
acreditem. Um dia os vi se esbarrarem pessoalmente em Brasília no saguão de um
hotel. O queixudo ameaçador ficou quietinho, baixou o olhar, leãozinho
amansado, rabo entre as pernas.
Nosso Carlinhos sempre
disse que, como gordo e feio que era, podia falar isso quanto quisesse de outro
gordo e feio. Eita humor refinado, ardido! Sabiam que Carlinhos trabalhou com o
Faustão, logo ali no começo dele na tevê? Escrevia para o programa.
Gostava de contar uma
piada, construir uma frase, definir alguém por algum detalhe que acabava
virando até código entre nós – olha, que politicamente correto ele não era
mesmo. Piadas de judeu, de gordo, de velho, com sexo ou não, uma coleção.
Histórias divertidas de jornalistas e suas trapalhadas, inclusive as amorosas,
uma atrás da outra. Sua passagem foi marcante em todas as grandes redações:
Folha de S. Paulo, onde pela primeira vez chegou com 19 anos, Jornal do Brasil,
Estadão, Jornal da Tarde (foi um dos fundadores), Revista Visão, Folha da
Tarde(Toninho Malvadeza!), Folha de S. Paulo novamente (foram três vezes por
lá). Em 92 fundou a Brickmann, hoje Brickmann & Associados, B&A Ideias,
para a qual colaborei desde 1993 até ir para lá em 1996 e ficar até hoje.
Juntos, também criamos em 2015 o site Chumbo Gordo, que farei de um tudo para
honrar, continuar reunindo o melhor do pensamento, os amigos, aberto à
democracia.
Quantos trabalhos
maravilhosos fizemos juntos! Como gostávamos de uma encrenca boa, gerenciar
grandes crises, acompanhar uma CPI, defender nossos clientes com provas diante
da opinião pública. Trabalho esse hoje cada vez mais escasso porque depende de
quem tenha reputação a zelar, alguma explicação a dar para se defender.
E nunca parou de escrever
suas colunas fantásticas, duas vezes por semana, para o nosso Diário do Grande
ABC e repicado em nosso site e em jornais de sites de todo o país. Foi durante
muito tempo também um crítico da imprensa em coluna especial no Observatório da
Imprensa, de Alberto Dines. Parecia prever a caminhada da imprensa e da
profissão para o buraco em que está hoje, repleta de desinteligentes, jovens
talentos de um talvez futuro, pouca afeição aos mais velhos. Mas a sua história
está e ficará para sempre registrada em todas essas páginas, muitas das
primeiras páginas, capas, em grandes reportagens, nas colunas que acompanharam
o tempo e as mudanças em círculo de nossa nação. Textos perfeitos, duros,
irônicos. Muito trabalho, sem esquecer as participações em tevês, debates, e o
amor ao rádio (há anos participava religiosamente do programa Showtime, com
João Alckmin, de São José dos Campos). Nunca deixou um amigo na mão, sem cobrar
um centavo. Era só pedir. Entrevistas para teses, livros de amigos, sinopses de
filmes sobre o Brasil.
Autodidata, culto, leitor
voraz. Posso garantir ainda o quanto nos últimos tempos odiou profundamente
tudo o que Bolsonaro e sua gente aprontou nesse governo que ele, pessoalmente,
considerava de inclinação nazista, para vocês verem o que observava das
tramoias que enfrentamos. O descaso com a Saúde, a Economia na mão do poste
Ipiranga, o desmonte das áreas de Cultura e social, o descaso com a verdade, o
violento incentivo ao armamento. Carlinhos era da paz.
Mas preciso voltar mais a
falar do Carlinhos mench, em ídiche, gente, “alguém para admirar e imitar,
alguém de caráter nobre. A chave para ser 'um verdadeiro Mensch' é nada menos
que caráter, retidão, dignidade, um senso do que é certo, responsável,
decoroso”, ensina o Wikipedia. Nossos escritórios sempre em casas de vilas
prazerosas onde desde sempre criámos gatos e gatas, que inclusive chegaram na
porta e ali passaram a morar. Morphy, Mel, Princesa... Na sua casa, o amado
Vampeta, o negro de olhos amarelos, irmão da minha Vesgulha Love. Sempre tivemos
bichos irmãos. Minha husky Morgana era irmã do Lobo. Carlinhos deixa órfãos,
além dos filhos Rafael e Esther, os gatos, a branquinha Jade, que deu à esposa
Berta, o Léo, o Chumbinho, a Laila. De um ano para cá a perda de Vampeta e da
Mel o deixaram especialmente deprimido.
Não posso deixar de
registrar que Carlinhos era corintiano roxo. Que Seleção, que nada! Futebol era
Corinthians, sem mais conversas. Adorava mangar dos “porcos”, palmeirenses, e
dos são-paulinos, salto alto, etc, etc... Times cariocas, ignorados, todos.
Daí, claro, o corintiano gato Vampeta.
Telefone. Difícil
encontrar alguém que gostasse mais do que ele de falar ao telefone, claro que
se não fosse no horário do jogo do Timão – e a gente ao ouvir tocar e assim que
ouvia sua voz já se preparava para no mínimo uma hora de variada e divertida
conversa Vai ter um monte de amigos lembrando disso também. No telefone,
enquanto falava, jogava paciência no computador, o único jogo a que se dedicou,
se distraía assim, pensando no tema da coluna, quando dava uma parada.
Computador que, aliás, que foi ele quem me apresentou à esta tecnologia e
ensinou a usar pela primeira vez, aqueles ainda do sistema DOS, de letras
verdes.
Tristeza é não escutar
mais a sua voz cheia de planos mesmo lá no hospital, logo que deu a primeira
melhorada. “Marlizoca...” Na recaída não ouvi mais esse chamado; não ouvirei.
Como pode uma perda desse tamanho? Alguém com tantas dimensões na vida de
tantas pessoas?
Ah, se for para escrever
sobre ele! Muita coisa divertida também. Os mais próximos bem sabem as duas
coisas que odiava, o-di-ava. Bacalhau. Palmito (achava que era crime de lesa
humanidade). Em compensação, amava abacaxi. Mas que não viessem com nenhuma
rodelinha branquela, desmilinguida, que ele fechava o tempo, senhores e
senhoras. Até com o garçom, nas poucas vezes que o vi muito bravo. Tinha de ser
amarelinho, lindo, daqueles que só se encontra lá pelos lados de Brodowski,
perto da sua amada Franca, outra de suas grandes honras. Dividia São Paulo em
Capital e “Grande Franca” no seu mapa particular. Ai de quem não reconhecesse
isso, e os doces de lá – chegou a escrever colunas para o Jornal de Franca
apenas em troca que lhe mandassem os doces e que quando não chegavam, reclamava
o pagamento.
Vou parar agora, que está
difícil demais conter as lágrimas. Quem agora vai me chamar de Marlizoca? Marli
“Gançalves”? Definida por ele, sempre, como o cinto mais largo da imprensa
brasileira por conta do meu hábito de usar atrevidas mini saias nos tempos do
Jornal da Tarde, nos anos 80, onde infelizmente não cheguei a trabalhar com
ele, nessa época já na Folha.
Galanteador, ah, jogava
charme mesmo para cima das moças, mas isso vou manter entre nós as que assisti.
Mulher feia? Não existia. “Não só não existe, como até já paguei por algumas”,
brincava, maroto. Quantas confidências. Quantas coisas ele também sabia da
minha vidinha, sempre apoiando minhas escapadas para encontros fortuitos em
algumas tardes.
Chega. Tem uma coisa
nessas lembranças e brincadeiras todas que agora vira terrível realidade.
Qualquer coisa que ele tinha, tipo sei lá uma dor aqui ou ali, fazia um drama
teatral e falava para eu já chamar a Chevra Kadisha, desde 1923 a instituição
responsável pela administração e sepultamentos dos cemitérios israelitas do Estado
de São Paulo e que oferece serviço funerário religioso para a comunidade
judaica.
Sabem? - nesse momento em
que escrevo, por incrível que pareça e nem sei como estou conseguindo, o
coração de Carlinhos ainda bate, fraquinho, lá no hospital, nos seus últimos
momentos de vida, anunciado no fim e desenganado pelos médicos aguardando o
apagar de seu corpo na frieza de uma UTI. Será uma questão de horas. Amargas e
incontáveis horas, depois de semanas de sofrimento e perdas no leito do
hospital. E a Chevra Kadisha, então, será chamada.
Perdemos Carlinhos
Brickmann. Eu perdi. O CB. Um irmão. Um amigo fiel. Com ele, se vai mais um
pedação, quase uma vida, e de minha própria história.
17 de dezembro de 2022
p.s.: Acabo de saber que
você se foi, às 17h30, enquanto eu escrevia totalmente ligada em você
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Com tantos sustos como os que todos estamos passando nesse fim de ano até o próprio Espírito de Natal, creio, chamou as renas pelo aplicativo e está
Cérebro. Duvidando até da sombra.
Em quem acreditar, sem duvidar? De um lado, estamos como ilhas cercadas de golpes por todos os lados. De outro, aí já bem esquisito, os cabeças-dura
Não chama a polícia. Ela pode apavorar, te matar, te ferir. Não sei se é um surto, se são ordens ou desordens, mas estes últimos dias fizeram lembra
Stress, o já aportuguesado estresse. Até a palavra parece um elástico que vai, estica e volta, uma agonia que, pelo que se vê, atinge meio mundo e n