Sábado, 20 de dezembro de 2014 - 10h10
Por Marli Gonçalves
Aqui em São Paulo, reparei nisso outro dia, estão abrindo mais óticas do que, sei lá, farmácias ou outras bibocas. Tem quarteirões com mais de três, quatro, às vezes uma do lado da outra, inclusive nas áreas mais nobres, e onde só uma armação pode custar os olhos da cara, para aproveitar o trocadilho. Será que o povo está míope, ou está vendo agora que não pode mais fechar os olhos para a realidade dura que bate, toc toc toc na porta? Olhe no olho mágico.
Há meses, quando a gente falava que a coisa já estava ficando feia, descontrolada, corrupa pra tudo quanto é lado, chamegos no poder, era chamado de arauto do mal, dragão, pessimista, xingado de tucano e mau brasileiro. Ainda tem uns gatos pingados por aí que teimam em manter a birra pós-eleitoral, mas só para não perder a pose ou o dinheirinho que recebem para cegar, porque a crise está tocando a campainha da casa de todos, e não dá mais para negar, tapar o olho mágico, botar corrente na porta, ficar quietinho fazendo que não está ali, em casa. Já viram uma temporada de fim de ano como essa?
Não sei por que acabei associando esse desembaçamento necessário - até para que consigamos mudar as coisas - com o aumento do número de óticas neste grande centro urbano paulista, e que acredito não seja só aqui esse incremento. Não deve ter a ver diretamente, mas sabem como é, não? Para crônicas a gente sai por aí catando assuntos, ocorridos, palavras.
Mas motivos têm. Se não tivesse aumentado o mercado, isso não ocorreria. Já vinha degringolando, mas de um ano para cá a minha visão deu uma caída considerável, e agora terei de virar quatro-olhos, usar os famosos para perto e para longe, para frente e avante. Viver o mundo digital muitas horas por dia cobra um preço bem alto. A perda de visão me parece que é um dos maiores males; claro além do LER, aquela dor do esforço repetitivo que inutiliza mãos e braços, e colunas vertebrais entortadas por cadeiras ou por manter o pescoço curvado olhando celulares e o mundo passando ligeiro pelas redes virtuais sociais.
O resultado inicial dessa minha comprinha obrigatória já é uma conta para pagar até o fim do ano que vem, mesmo que a armação que tive de escolher tenha de ter sido mais quenguinha. Acreditem, as lentes saíram muito mais caro do que eu poderia prever.
Sei que também é falta de ver horizonte, entendido de forma literal ou abstrata. Os olhos, na cidade grande, estão sendo sempre barrados, por motivos ou prédios, difícil se enxergar ao longe e enxergar é algo amplo, mais que ver, mais que avistar. É prestar atenção. Ser capaz de distinguir as coisas, e até se antecipar a elas, prever. É poder considerar. (Será por isso, me ocorre agora, que a personificação da Justiça seja aquela moça de olhos vendados?)
Pelas lentes, variadas sejam elas, podemos ver e, se escuras forem, podemos até esconder o lado para o qual olhamos. Um olho no peixe e outro no gato, como diz o dito popular; ou aquele outro dito, quem vê cara não vê coração (me lembra a Petrobras e sua presidente). O que os olhos não veem o coração não sente (até que seja descoberto como foi apunhalado). Longe dos olhos, perto do coração já e coisa mais poética, a mim lembra até música que um dia me foi dedicada, bela perdida no tempo.
Dá para ir longe olhando por esses ângulos, nessas frestas, brecheiragens de nossos dias. Mas para a gente olhar para fora, tem uma inflexão espelhada, o enxergar-se.
É um exercício a fazer ano que vem. E aproveitar e enxergar-nos uns aos outros.
São Paulo, sob várias óticas, 2014-2015
Marli Gonçalves é jornalista - Ver pontos pretos, ou moscas volantes, como chama esse negócio, não é legal. E pontos luminosos, aqueles muito loucos que aparecem, se acontecer muito é melhor falar com o médico. É o cérebro mandando algum sinal para você ver.
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Tenho um blog, Marli Gonçalves, http://marligo.wordpress.com. Estou no Facebook. E no Twitter @Marligo
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