Sábado, 4 de novembro de 2023 - 09h57
Já foi assim. Bateu. Bateu forte um certo
saudosismo essa semana, e lembrei muito de como já foram algumas coisas – se
melhores ou piores não sei bem, mas eram legais. Foram transformadas. O que
havia aqui e ali, como se comportavam, onde nos divertíamos e crescíamos.
Em uma escola tradicional do Rio de Janeiro um grupo de
estudantes moleques e malcriados se reúne. E, usando aplicativos de deepfake,
inteligência artificial para trocar e sincronizar vozes, caras, imagens e o que
mais se puder imaginar, criam imagens das estudantes nuas e passam a
espalhá-las. Usam um efeito de, digamos, sumir com as suas roupas, usando
inclusive as fotos delas próprias em suas redes sociais. Escândalo. Panos
quentes para os que foram parar na polícia, porque isso é crime, e dos bravos,
dá cana, e não se tem ainda nem ideia do número de estudantes atingidas nem se
foi só na tal escola, escola essa, inclusive, particular, católica, Igreja e
Colégio Santo Agostinho; muito menos se sabe como conter a expansão dessas
imagens, que podem ir parar em sites de sexo e conteúdo adulto e os estragos
durarem anos. No meu tempo diríamos que é uma maldade do tamanho de um bonde,
com consequências quase tão imprevisíveis como os das invasões de escolas por
estudantes insanos, armados, querendo vingar bullyings sofridos. Ou
influenciados por grupos do mal, no tal descontrolado Discord.
Deepfakes e facadas. O que antes era rusga entre crianças,
coisas de primeiros amores, sacanagens como grudar chicletes em cabelos,
tachinhas nas cadeiras, resolvidas entre os alunos ou com idas à sala de
diretoria, anotações no boletim e suspensões. Agora, crimes, hediondos e
odientos.
Esse fato me chamou muito a atenção, até porque estava
nessa, de lembrar de momentos, lugares e coisas antigas legais. É mais do que
os #tbt que chegam às quintas-feiras, e onde todo mundo aproveita para desovar
fotos. Nas redes sociais há muitos grupos de memória de São Paulo, que publicam
antigos registros fotográficos de ruas, regiões, arquitetura, costumes,
propaganda, moda, fatos, momentos, pessoas. É como se eles balançassem
fortemente os galhos da nossa árvore de memórias. E daí vem uma cascata com uma
coisa puxando a outra, nem todas boas, mas algumas que estavam bem guardadas.
Quando tem o Antes e o Depois, então, é de chorar.
Foi a única vez que me atrevi num treco de despencar
desses: a lembrança mais legal da semana foi recordar a alegria, os berros e a
gargalhada de minha mãe descendo comigo o tobogã do PlayCenter quando este era
só um parque de diversões mirradinho, na Rua Brigadeiro Luis Antonio, e do qual
revi agora uma foto; talvez você aí nem tinha nascido. Faz tempo, tanto que até
o PlayCenter da Marginal, enorme, já sumiu. Puf!
São Paulo tem passado por uma transformação violenta de
lugares afetivos, com a demolição de quarteirões inteiros para a subida de
prédios de vidros fechados, condomínios cercados e varandas gourmet. Nada
contra o progresso, mas é que ele tem chegado violentando muito agressivamente,
bem além do que se transforma do analógico ao digital, e que muitas vezes nem
nos damos conta. Vocês têm noção do que é usar, por exemplo, o Waze, em carro
totalmente analógico? “Vire em 800 metros”, e você lá tentando ver os números
virando nos relógios do painel.
O tempo transforma a vida, a linguagem – palavras e
expressões que hoje soam até esquisitas quando ouvimos – casa noturna (que
perdeu o sentido, por exemplo). Fora as condenadas que passam até por exageros
como a polêmica recente que ousou classificar como racista até um termo
cientifico, astronômico, buraco negro (“região do espaço-tempo em que o campo
gravitacional é tão intenso que nada — nenhuma partícula ou radiação
eletromagnética como a luz — pode escapar”). Lacração pura, na linguagem atual,
proferida por uma ministra, Anielle, que até agora, desculpem, só fez lacrar,
para tristeza de quem achou que ela poderia honrar e ser bem mais significativa
do que o triste momento que sua irmã, Marielle Franco, foi assassinada.
Vivi, muitos vivemos, novidades, avanços inquestionáveis,
melhorias, progressos. Mas que estes sejam os que possamos celebrar para
melhorar. O que incomoda é que em muitas coisas, aqui e no mundo, estamos mesmo
é andando para trás, e a maior constatação é que isso tudo está se infiltrando
e fazendo terríveis distopias virarem realidade, com muita desumanidade.
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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação,
editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano - Bom para mulheres.
E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).
marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br
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