Sábado, 3 de junho de 2023 - 08h06
Em junho completo mais uma rodada em torno do
Sol, chego agora a ser oficialmente mais idosa ainda do que até já era, como
determinam decretos. Agora não há mais discussão, e espero ao menos não correr
mais o risco de ficar sem o transporte coletivo gratuito como ocorreu até que
se reestabelecesse este ano.
Nada fácil falar de idade, embora nunca tenha omitido ou
mentido a minha. Mas sei bem como funciona, sempre prestei muita atenção nisso.
Nada fácil ser mulher. Nada fácil ser mulher e falar de idade – a gente vive
mais, mas parece que vai ficando a cada dia mais transparente aos olhos de
todos. Uma invisibilidade progressiva que se acentua e, pior, já começa quando
ainda se é vital na sociedade que cada vez mais se torna supérflua,
instantânea. Falo de amor, de atenção, de flerte, mas também – e muito - de
reconhecimento profissional e da procura por espaços abertos ao crescimento.
Engraçado é que comecei bem cedo. Tinha 15 anos quando sai
para trabalhar fora pela primeira vez, como vendedora de uma loja na Rua
Augusta, na vã esperança de que poderia ganhar para ao menos comprar uma
motocicleta, minha paixão à época. Cheguei antes a ter uma, aos 13, mas nesse
país sempre cheio de decretos regulando nossas vidas, especialmente durante a
terrível ditadura, à época foi proibido esse acesso a quem tivesse menos de 18;
revoltada, fui obrigada a vê-la sendo levada. Mas nesse trabalho quase paguei,
e nada ganhei. Só que dali em diante nunca mais parei.
Foi, no entanto, ao sair para a vida, quando descobri
muitas coisas novas, desde com pessoas que propunham a liberdade total naquele
momento, do mundo do rock e seu redor, à luta política que também me levou ao
feminismo, ao jornalismo, onde já completo mais de 47 anos, 44 contando da
formatura oficial na Universidade. Sempre me meti nas coisas antes do tempo, me
adiantando a ele, assim continuo e assim pretendo continuar. Enquanto não ficar
transparente total vão me ver nessa luta. Nela, aos 65, ainda serei precoce em
tudo como sempre. Não desaparecerei assim sem mais ou menos.
Toda hora vejo aqui e ali novas determinações e regras de
pode isso, não pode aquilo, muitas travestidas de modernidade, de conselhos, de
bondades. No fundo é tudo mesmo muito preconceituoso. Pode vestir isso, “vai
ficar bem para a idade”, mas não aquilo, pela elegância. Matérias sobre 40 +,
50+, 60+ inundam os portais, mas sempre com um quê de condescendência, de faça
isso, sinta-se assim, para obter um selo de aprovação. Durante toda a vida às
mulheres sempre cabe estarmos postas em cercadinhos de etapas, que devemos
passar pulando, como cercas, como que tocadas como gado. Upalelê, agora é hora
de casar; ser mãe; ser avó; fazer plástica; cortar o cabelo; encompridar a
saia; dar espaço aos jovens; aposentar; se aquietar; morrer?
Sou do contra. Até na audácia de falar sobre isso. De
chegar até aqui onde cheguei vendo tantas outras desistirem no caminho e na
alegria de saber que muitas de nós persistem, mesmo que como corpos estranhos
na sociedade, destacadas como seres exóticos, “originais”, entre outros
adjetivos que ganhamos. Outro dia mesmo ouvi que sou “autêntica” e fiquei
pensando se isso queria falar bem ou mal.
Nasci no glorioso ano de 1958. Assim, chego daqui a alguns
dias nesta nova maioridade, me acostumando a ela, em forma, e alguns fios
prateados. Pela primeira vez o aniversário cai em um feriado neste junho, mês
especial de festas para Santos, de chuva de meteoros, de tapetes de flores nas
ruas. De muitos arco-íris nas ruas festejando, defendendo e consagrando a
liberdade e a diversidade sexual – tudo na mesma semana.
Sei que receberei centenas de mensagens maravilhosas,
amada, porque mesmo do jeito que sou – e talvez até mesmo por isso – sou bem
considerada por pessoas de todos os cantos, tipos, formas, pensamentos que
conheci ao longo desse tempo, mesmo que tantas outras tão especiais tenham sido
perdidas e seguiram para algum outro plano. Já fico feliz em pensar nisso como
uma forma de apoio. Pessoas que de alguma forma reconhecem (e muitas invejam!)
que nenhum dia é fácil para quem fez as escolhas que orgulhosamente fiz, faço e
cumpri. Amei, fui amada, sobrevivi aos fins e sempre afiada e pronta aos
começos.
Desde já, agradeço, de coração, pelo menos a elas estar
bastante visível. Para as que ainda tentam me arrancar de suas histórias ou me
ignorar, só posso dizer que isto é impossível: a memória é implacável.
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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação,
editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano - Bom para mulheres.
E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).
marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br
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