Sábado, 9 de março de 2024 - 08h00
Migalhas que catamos, igual à história de João e
Maria, que espalhavam tecos, migalhas de pão, para marcar os caminhos e não se
perderem, mas elas foram (ou estão sendo) comidas. Assim, está sendo,
infelizmente, com as mulheres, sempre na luta e, ainda, agora, lidando com os
absurdos retrocessos em suas bravas conquistas. Mas não são só as mulheres.
Todo ano, a mesma coisa. E o ano que vem, parece, tem mais.
O histórico 8 de Março, Dia Internacional da Mulher – veja bem, dia marcado
pela luta secular, não é mês, nem semana, é dia – marca uma avalanche de
notícias, uma atenção especial; mas os dados que surgem são ainda
estarrecedores em nosso país. Continuamos em filas por empregos, saúde,
reconhecimento de jornadas, salários iguais e segurança, entre tantos outros
temas que nos são tão caros.
2023 bateu o recorde de feminicídios no Brasil, 1.463
mortes. Fale esse número bem alto, para ouvir bem tal absurdo. Uma alta de 1,6%
em relação ao ano anterior, o maior da série histórica. Um feminicídio, quando
o assassinato é motivado apenas pelo fato de ser mulher, a cada 6 horas, metade
deles por armas de fogo, a maior parte de mulheres negras e pobres, a maioria
dentro de suas casas, vitimadas por companheiros e ex-companheiros. Os dados do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública são estarrecedores.
Mulheres de todo o mundo vêm sendo massacradas em pleno
Século XXI, massacre ampliado com as guerras, onde elas e suas crianças têm
sido as maiores vítimas, tudo diante de nossos olhos. Mas precisamos tratar do
que ocorre aqui, nos nossos caminhos, nas migalhas comidas pelos retrocessos
muitas vezes antes que possamos desfrutar.
Ouvi com atenção o – desculpe, fraco - discurso feito em
horário nobre pela ministra Cida Gonçalves, Ministra das Mulheres do Brasil,
nome pomposo. Fiquei surpresa, sim, mas com o número de vezes que a fala grifou
o nome do presidente Lula, como se este fosse o Salvador de nossos mais íntimos
desejos. Cinco vezes, se não errei a conta. Mais um pacto anunciado, o de
Prevenção aos Feminicídios. E mais medidas protetivas, dessas muitas que na
Hora H, conforme os números claramente mostram, não têm funcionado. As armas de
fogo amplamente difundidas especialmente no governo anterior estão aí, e
matando a todos nós brasileiros, homens e mulheres, espalhadas, nas ruas,
trazendo o horror. Dependendo do Estado o efetivo policial anda bastante
ocupado em matar antes de perguntar, e mais mulheres e o sofrimento de ver seus
filhos sendo levados, uma espécie de morte em vida para mães, e que não entra
nos registros.
Como mulher e feminista, lido com esse tema há praticamente
50 anos, e me surpreendo ao ver que em praticamente todos os temas estamos na
mesma e cansativa luta, embora estejamos conseguindo ampliar os espaços no
mercado de trabalho e sermos mais notadas, inclusive nas reinvindicações. Só
para lembrar o óbvio: somos mais da metade da população; ninguém,
decididamente, está nos fazendo favor algum.
Há, contudo, e é preciso que atentemos urgentemente a isto,
uma onda alta, muito perigosa para todos, homens e mulheres, já visível, de
conservadorismo reacionário vindo das ervas daninhas que se proliferam ladinas
em todos os cantos, nos parlamentos, igrejas, no poder, adentrando escolas e
instituições, muitas vezes aproveitando a distração dos pescoços curvados em
celulares ouvindo e crendo em líderes de barro.
São tapas em nossos rostos. Censura de livros em alguns
Estados, como o que fazem de “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, tratando
do racismo. Um moleque sem noção, deputado federal, Nikolas Ferreira, à frente
da Comissão de Educação, da qual não tem a menor ideia. A mais importante
Comissão, de Constituição e Justiça, presidida por uma inexpressiva deputada,
Caroline de Toni. Escolhidos pela atual e triste oposição que se traveste de
verde e amarelo. Em São Paulo, a Assembleia discute, acreditem, a implementação
do modelo de Escola Cívico-Militar, e em áreas de maior vulnerabilidade social.
Disciplina baseada obviamente em valores militares, que já vivemos para ver e
sentir.
Apenas alguns itens de uma lista macabra. Agora, também em
verde e amarelo, o lançamento de uma linha de perfumes Bolsonaro, além das
botinas, canecas e chinelos com seu nome. Estão brincando. E nós a cada dia
ficando sem lado no meio de todo esse bombardeio que já empesteia o ar.
É preciso gritar. E alto. Rápido. Antes que nos percamos
definitivamente em nossos caminhos e acabemos encurralados em jaulas onde nos
engordarão tal como na história de João e Maria. Nós, as Marias e os Joões, e
nos querem como alimentos. Isso não é uma história infantil. O final, mantido
assim, não é feliz. E já "Era uma vez".
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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação,
editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano - Bom para mulheres.
E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em
São Paulo. marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br
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