Sábado, 8 de abril de 2023 - 08h50
Os tempos mudam o sentido até das nossas próprias
lembranças divertidas quando, molequinhos e molequinhas, fazíamos – claro –
molecagens, traquinagens, algumas inocentes e até outras nem tanto, admitamos,
só que sempre ainda com aquele espírito infantil. Eram coisas de criança,
perdoáveis, às vezes valendo um castigo, uma sova, um sabão. Ou uma suspensão
na caderneta que precisava ser mostrada aos pais e voltar, assinada.
Meu irmão outro dia me chamou a atenção de que anda
percebendo que tem muita gente aí pela rua fazendo pequenas molecagens, gente
grande, ou maiorzinha. Às vezes em grupos de dois, três; outras, mesmo
sozinhos. Tipo apontar o céu como se ali estivesse acontecendo algo, e fazendo
todo mundo olhar para cima. Ou passar e apontar para o seu pé, sem parar,
seguindo adiante como se nada tivesse ocorrido. Coisinhas bobas, que até arrancam
um sorriso daqueles bons em dias que estávamos submersos e afogados na
realidade dura. Ele próprio – vejam só - inventou uma graça, soltando de
repente para alguém desconhecido na calçada um sonoro “oi, amigo!” e um aceno,
quando passamos de carro. Muitos olham, sorriem, alguns dão tchauzinho. Outros,
nem te ligo, continuam com a cabeça enfiada no celular, esse novo mundo
particular que suga e entorta os pescoços.
Tentei rever algumas molecagens do tempo de escola, todas
bobas que fazíamos até por alguma diferença com amiguinhos, e até com
professores. O chiclete ou uma tachinha grudados na cadeira. Esconder alguma
coisa. Não lembrei de muitas porque sempre fui boazinha, estudiosa, mas via
outros aprontos, repito, se comparados, bem bobos, perto do que hoje
denominamos bullying, capaz de gerar tantas tragédias. Hoje, na cultura do ódio
que se espalhou pelo globo, no anonimato da internet e vias digitais, a coisa
se escancarou, levando a suicídios, vinganças, planos de ataque e emboscadas.
Não há mais graça, e é como se os jovens reproduzissem o pior do mundo adulto:
misoginia, racismo, humilhações por diferenças de classes sociais, não
entendimento de pessoas com necessidades especiais. Os tempos realmente
mudaram.
Tem se revelado que não é outro o motivo dos tenebrosos
massacres nas escolas, jovens que voltam onde estudaram para revidar o
sofrimento que ali lhes foi causado, mesmo que nem todos tenham se apercebido
disso. Monstros criados pela própria sociedade, alimentados pelo descaso com
que são tratadas as dores que sentimos enquanto crescemos, algumas que
necessitavam de maiores cuidados. Todo mundo conheceu alguma peste na escola,
sabe que crianças podem ser muito más. É de se notar que esses casos horríveis
envolvem sempre meninos – não lembro de um desses ataques ter sido feito por
alguma menina. O mais comum é que se atraquem tentando arrancar os cabelos umas
das outras. Embora o noticiário traga sempre alguns casos terríveis de pequenas
jovens assassinas, dando fim em outra, em geral por ciúmes.
Claro que, infelizmente como vimos esses dias, o ataque
também possa vir de um adulto problemático e perturbado, em algum lugar que
simbolize o que odeia, mas a análise quase sempre revela um problema de
infância ou adolescência não resolvido, guardado. Uma maldade cultivada durante
anos, agora adubada nas profundezas de grupos malignos que brotam e atravessam
portas e janelas dos quartos onde solitariamente dialogam com o obscuro,
incentivando entre si o estrelato de seus autores. Invadem as redes, as telas, formam
grupos intolerantes. Aí as molecagens ganham outro sentido, desprezíveis,
canalhices perigosas e perturbadoras.
Como eles sabem muito melhor do que nós operar esse mundo
virtual, sem escrúpulos o fazem, agora aprendendo até a disseminar
incontroláveis fake news, como muitas foram efetivadas essa semana, logo após o
ataque mortal à creche em Blumenau. As redes nacionais foram invadidas por
ameaças citando ataques que seriam realizados em escolas que citam nomes,
endereços e até datas.
Precisamos muito falar sobre isso com nossos molequinhos e
molequinhas, saber o que acontece nas escolas, atenção às formas de socialização
nas escolas, impor esse assunto no tema geral Educação, com treinamento para os
profissionais detectarem os primeiros sinais. Não basta botão de pânico, quando
ele já está em curso. Não é mais brincadeira, traquinagem, nem infantil, nem
inocente, nem boba, quando envolve incentivo de fora, de adultos, ou de quem
quer só botar fogo na palha, provocar sadicamente a eclosão do inferno.
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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação,
editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano - Bom para mulheres.
E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).
marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br
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