Sábado, 18 de maio de 2024 - 08h01
Estamos todos por aqui, até aqui, transbordando,
mais do que água, por decepções em série. Lembro de uma comediante de origem
francesa que dobrava o “r”, e que agora diria "Estamos porrraqui" e
para muitas coisas, que a lista é bem grande.
Um grupo de jovens gaúchos que moram em São Paulo criou um coletivo
muito interessante e puseram em prática uma ideia boa e simples como forma de
chamar a atenção para a tragédia que se desenrola no Rio Grande do Sul, para
que se tenha noção de até onde a água chegou, dois, três ou mais metros em
alguns locais. Não só, mas também para alertar sobre a gravidade cada vez mais
próxima das catástrofes, das emergência climáticas e a necessidade de preparo
antes que aconteçam. Espalharam na Avenida Paulista e em outros centros de
atração da Capital adesivos “Água até aqui”, que grudaram bem alto, em vários
locais, justamente mostrando a altura de até onde a água chegou, soterrando
praticamente cidades e vilas inteiras no Sul do país, com milhares de
desabrigados, mais de uma centena de mortos e, ainda , de outra centena de
desaparecidos. Pretendem com isso que sintamos e nos coloquemos no lugar dos
gaúchos, compreendendo como seria uma inundação como aquela se tivesse
ocorrido, por exemplo, aqui em São Paulo. Se bem que já experimentamos umas
boas noções a cada chuva mais forte.
Não dá pra deixar de pensar na continuidade dessa ideia com tantos
problemas que transbordam diante de nossos olhos, e alguns adesivos teriam de
ser afixados não só no alto, mas também até em bueiros. Nos caminhos
percorridos pelos poderosos, em seus elevadores, no espelho de seus banheiros,
nas etiquetas das roupas que compram. Na caneta com a qual assinam
barbaridades. Ia faltar adesivos.
Os gaúchos tornaram real uma vontade que acalento desde que adotei a
hashtag #ÁrvoreNãoÉLixeira , uma luta inglória e solitária que encampo contra –
e são muitos - quem usa as árvores da cidade para depósito de todo tipo de
lixo, ou mesmo aqueles que tentam envenená-las por conta das coitadas
espalharem suas folhas, ou atrapalharem a visão de seus letreiros ou garagens.
Já vi de um tudo, e nem conto as bobagens ou desculpas esfarrapadas que ouço
quando confronto os responsáveis. Pensei há algum tempo se funcionaria um
adesivo para protegê-las.
Mas esse é outro assunto. Voltando ao tanto que temos de temas que
estamos “por aqui”, enumeramos as tentativas insanas de acabar com direitos
adquiridos após tantos anos de luta, as bárbaries perpetradas diariamente
contra as mulheres, contra a comunidade LGBTQIA+, o racismo, a violência
policial. A falta de atitudes reais.
Repararam? – e apenas um fato entre tantos – repare só: quase todos os
motoristas flagrados em acidentes cada vez mais mortais de que temos notícia
não só estavam embriagados, como muitos curtindo “rachas”, mas sobretudo sem
qualquer habilitação e há muitos anos, colecionando multas, claro que não
pagas, andando por ai colocando todos nós em perigo? Só eu e você sabemos
disso? Os locais de encontro dos irresponsáveis são públicos e notórios, mas...
Há algumas blitzes; sempre vejo uma que ocorre na Avenida Europa, nos Jardins,
em geral no domingo, hora do almoço, tudo marcadinho e não sou só eu que sei
disso, eles também. Ok. Quando os policiais viram as costas, todos voltam com
seus possantes numa espécie de desfile, barulhento e muito perigoso, alta
velocidade, pista de teste de Ferraris e quetais, acompanhadas por carros mais
simples, com motores mexidos. Virou lugar “turístico” e os apreciadores vêm de
longe, em grupos, trazem até cadeirinha de praia, se instalam por todo o
percurso da avenida.
Estamos por aqui também de tantas mentiras oficiais. Muitas, toda hora,
de todas as esferas de poder. E as não-oficiais. Muitas. Fake news pavorosas
que já desenham no ar o que será a peleja das próximas eleições. Na área do
Judiciário sambam em nossas cabeças, que abaixamos por conhecermos o poder que
dali emana, a força daquela mão que pode nos calar, e de vez, como cala muitos
setores da imprensa, sinto dizer, infelizmente.
Vão faltar adesivos na praça se essa moda pega. Ficaremos cansados
também se, além dos adesivos, começássemos a demonstrar que estamos por aqui,
até aqui, ó! usando aquela espécie de continência torta que podemos fazer
batendo em nossas testas com a mão reta, mostrando que está ultrapassada a
nossa paciência, acima de nosso nariz, do que nossos olhos presenciam, nossos
ouvidos tomam conhecimento.
Transbordamos todos os dias, e em todo o país.
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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do
Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano - Bom para mulheres. E para
homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em São
Paulo. marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br
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