Sábado, 30 de julho de 2022 - 09h35
Olha a faca! Tenho verdadeiro horror às armas chamadas brancas,
especialmente facas. Às vezes até penso se não houve algum episódio, sei lá, de
vidas passadas – devo mesmo ter sido atingida por uma. Ultimamente temos sabido
de tantos casos de ataques com facas, que demonstram que o país ficando cada
dia mais violento e armado, seja com o que for, inclusive com a língua ferina,
e já fora de qualquer controle, modas macabras. E tudo está virando “legítima
defesa”
Facas são traiçoeiras. Armas, todas, são traiçoeiras,
claro. Mas enquanto andamos – e com razão – bem preocupados com o aumento de
armas de fogo no mercado, incentivadas pela “besta” (e que não é aquela com
arcos de flechas), as facas são livres, comuns, bem fáceis de serem encontradas
em todos os locais e cozinhas. Uma lâmina qualquer que zune, em qualquer
tamanho e forma, pode matar, aleijar. Fazem um estrago danado, usadas de bem
perto, como já vêm sendo entre as quatro paredes das casas das inúmeras
mulheres mortas por seus ex-companheiros que, com elas, aplicam golpes de suas
raivas incontidas buscando não só desfigurar suas vítimas, mas estripá-las,
deixá-las sangrando, como num fetiche de terror. Soubemos de mais vários casos
essa semana, inclusive cortando bebês. Os casos de feminicídio se multiplicam,
a cada dia mais tenebrosos, embora quase todos com o mesmo batido roteiro. A
verdade é que as mulheres continuam desprotegidas, e quando denunciam não há
proteção real que faça com que a lei se cumpra. Isso precisa acabar.
Aliás, pra ilustrar ainda melhor, soube do delegado, lá no
Rio, de uma Delegacia da Mulher, que espancava a esposa e foi denunciado?
Voltando às lâminas malditas e armas que se multiplicam nas
mãos dos caras que juram que são esportistas ou caçadores, e até legalizadas
para organizações criminosas - nosso país virou mesmo uma balbúrdia. Ainda tem
a versão facão – com sua aparência bruta, em geral enferrujada na utilização em
outros serviços, ainda mais tenebrosa, anormal e decepante.
Acontece que estamos cercados por todas as formas de
violência, nesse momento de retrocesso geral que parece ter dado marcha-a-ré no
tempo, e muito rápido. Volta agora a ser frequente também ouvirmos a
justificativa mais dolorosa, a da legítima defesa, e nós mulheres precisaremos
já nos organizar para que não retorne sua pior versão: a de legítima defesa da
honra que tanto nos matou sem a punição dos assassinos.
Estou ouvindo o podcast Praia dos Ossos (vale a pena) e
logo nos primeiros episódios, relembrando detalhes à época do julgamento, anos
depois, de Doca Street, que matou Angela Diniz em 1976, é difícil não sentir
nojo dos detalhes usados para crucificar a vítima em busca de inocentar o
canalha. Lutamos muito contra essa tal legítima defesa da honra que perdurou
durante muito tempo, e de certa forma está sempre por aí tentando renascer. O
argumento da “sob forte emoção” volta a pairar, como se as vítimas fizessem que
fizessem, forçassem, para se tornar justamente vítimas.
Tem muita coisa voltando à tona – não esmagamos suas
cabeças adequadamente, nem usamos balas de prata. Dos Anos 70, além da moda que
vamos e venhamos era horrorosa, vêm ressurgindo a repressão, a censura e a
violência contra a mulher que assistimos muito naqueles anos quando começamos a
finalmente nos liberar e aos costumes, saindo para trabalhar, reafirmando
nossos direitos, inclusive à até então sufocada sexualidade. O desprezo pela
vida, as facas furando corpos, os tiros à queima-roupa.
No entanto, tem voltado, ao mesmo tempo, a nossa ânsia pela
liberdade e por pessoas mais capacitadas para nos conduzir adiante, igual
àquela luta que empreendíamos no final dos anos 70, depois de muitas perdas, e
que enfim só resultaram em coisas melhores na década seguinte. Uma boa moda,
essa, agora com o Manifesto do Largo São Francisco (Estado Democrático de
Direito Sempre!!!) e que de alguma forma reescreve a histórica Carta Aos
Brasileiros, de 77, para os dias de hoje.
Era agosto de 1977. Agora estamos, 45 anos depois, em outro
agosto, de 2022, e esse novo manifesto se espalha com força e se torna uma
arma, sim, mas arma boa e que pode abrir novamente nossa esperança de que logo
logo nosso coração ao menos se apazigue contra as ameaças que vêm sendo feitas
ao país, e que nossos ouvidos parem de ouvir tantas sandices como as que temos
ouvido diariamente nos últimos longos e sofridos quatro anos, que começaram
justamente, ironia, com uma facada.
Que essa, sim, seja tendência que se espalhe, a de
retomada. Pela nossa honra, de todos e todas nós, sem tanto sangue vertido, e
com muita emoção, sim, felicidade.
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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação,
editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano - Bom para mulheres.
E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).
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