Sábado, 26 de novembro de 2022 - 09h07
Recordações despertadas por gatilhos. São lances
de memória que explodem junto com os fatos e as coisas do presente, esse
momento que logo vira passado, tão efêmero que é. O passado é assentado em
algum lugar da memória, volta em golfadas. O futuro, ah, este é sempre o daqui
a pouco.
Deve haver alguma gaveta, caixinha, miolo, não é possível
que não seja assim, onde guardamos algumas lembranças, as especiais, que ficam
arrumadinhas lá dentro até que algo acontece no caminho da vida, vira a chave e
a abre, de lá retirando e nos fazendo reviver vividamente o outrora, seja bom,
muito bom ou ruim, muito ruim. Esse gatilho chega com tamanha intensidade que é
incontrolável. E só seu.
Aí está a questão que me incomoda não é de hoje. De alguma
forma estas lembranças estavam guardadas também com outra pessoa ou pessoas que
as viveram ou presenciaram. Deveríamos poder sempre consultá-las quando vêm à
margem, de forma que pudéssemos checar se na tal gaveta onde guardadas estavam
se modificaram, perderam ou ganharam sentido. Daí necessitar de referência.
Estou perdendo todas as minhas referências, e esse vazio –
com o passar dos anos – causa uma profunda angústia. Muitas dessas pessoas
partiram, e levaram com elas a possibilidade de comprovação de muitas coisas
que eu contaria, por exemplo, em uma autobiografia que um dia talvez ousasse
escrever. Chego a ter um pouco de inveja de quem tem mais amigos das décadas de
vida. Tenho muito poucos e os mantenho como se fossem joias, mesmo que
distantes. Triste que em cada uma das décadas que vivi alguns dos principais
coadjuvantes foram levados. Várias formas. Muitos, nas epidemias, de Aids;
agora nesta que vivemos de forma tão dolorosa nos últimos três anos. E agora?
Quem vai me ajudar a recuperar com mais precisão as aventuras de vinte, trinta,
quarenta, cinquenta anos atrás?
Já os amores, alguns desses foram levados pelo vento, ainda
nem lembro bem porque ficaram pelo caminho, por melhores que tenham sido no seu
tempo. Os terríveis, e os vivi, sou eu mesma que tento assassinar de novo a
cada lembrança nas vezes que chegam para a revisão. Alguns, muito bons, estão
por aí ainda, mas não posso acioná-los, embora até devesse, por considerar que
jamais deveriam ser esquecidos por nenhum dos lados como a mim parecem agora
estar sendo - tal a intensidade, forma e o tempo de sua duração.
Tudo isso para dizer que também, igual você talvez, andamos
perdendo muitos outros tipos de referências, Gal Costa, Erasmo Carlos, para
citar algumas, e as suas mortes funcionaram como as tais chaves que guardavam
as gavetas que se escancaram ao ouvir as melodias e letras que embalaram nossa
existência em várias fases da vida. Elas escavam o passado sem qualquer
controle possível.
Me vi esses dias com pouco mais de nove anos de idade, nas
areias da praia de José Menino, em Santos, percebendo quando ocorreu o meu
primeiro amor, e o quanto foi platônico. Lembrei o nome! Ivo. Vejam só. Era o
namoradinho de uma amiga minha, mas desta não recordo de jeito nenhum como se
chamava. Adivinhem, claro, qual música – aparecendo na biografia de Erasmo –
despertou e resgatou esse sentimento com todas as sensações daquele tempo tão
longínquo e esquecido até essa semana.
Não sei se já contei, também, que passei minha infância ali
na Rua Augusta, que era o caminho dos ídolos da Jovem Guarda e todos seus
amigos a caminho da então gloriosa TV Record. Quando podia, esperava na porta
do prédio que eles passassem em seus carrões. Absolutamente apaixonada pelo
Ronnie Von, “Meu bem” (Hey Girl), fazia questão de manter os cabelos lisos e
compridos, com uma franja que jogava igual a ele quando cantava, alguns devem
recordar exatamente esse movimento; era o príncipe dos sonhos naquele momento.
Até há bem pouco tempo, inclusive, ainda me sentia intimidada quando - já bem
crescida- o encontrava pela cidade.
Vejam só como eram belos e perenes os ídolos de outros
tempos, e o que explica a comoção causada com as suas partidas. E como é grande
o medo de continuar perdendo os meus próprios registros pelo olhar de outros. A
torcida continua. Aquela. Vocês sabem qual.
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MARLI GONÇALVES – Foi lindo respirar o ar da torcida pelo
Brasil, a primeira vez em anos que pareceu todos torcerem em uma só direção,
sem divisões. Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo,
autora de Feminismo no Cotidiano - Bom para mulheres. E para homens também,
pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). marligo@uol.com.br /
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