Sábado, 5 de novembro de 2022 - 08h10
Acordei esgotada de passar a noite inteira sonhando que estava
arrumando malas e sei lá para onde é que era para ir. Vocês já tiveram sonhos
desses, de noite inteira, de sonhar contínuo? Acordar, voltar a dormir e
continuar com o mesmo sonho, quase um delírio?
Pois foi isso que me deixou encucada. Primeiro porque é bem
difícil eu lembrar com o que sonhei; segundo, porque inacreditavelmente lembro
de ter praticamente arrumado e repassado o meu armário inteiro – e isso é
muito. Ou seja, tudo o que tenho passou na minha mente, guardados de décadas,
outras para lembrar dias e emoções – sim, a roupa que estava em um dia ou outro
importante, amoroso, quase um museu particular. Coisas para doar, cores,
casacos, calcinhas rotas até. Eu ia separando e arrumando tudo num movimento
sem fim. Não foi por menos que acordei cansada.
Aí me toquei: ressaca eleitoral, só pode ser. Fiquei muito
traumatizada com uma pequena saída que dei dia 2 de novembro, no feriado, dois
depois do término das eleições. Andei dois quarteirões até o supermercado e vi
um monte de gente muito esquisita lá dentro e perambulando pela rua iguais aos
viciados da Cracolândia. Zumbis. Não estavam enrolados em cobertas de lã, mas
com a bandeira nacional, a coitada vilipendiada. Traziam pela mãos criancinhas,
que depois vi também serem usadas como escudos nos bloqueios das estradas.
Já não estava com bom humor, admito, depois de ter passado
a noite anterior inteira tentando dormir ouvindo estouros de rojões, muitos,
centenas, um atrás do outro, som que vinha ali dos arredores do Parque
Ibirapuera, de onde moro há uns três quilômetros de distância. A noite inteira.
Se foi inferno para mim, imagino o que assustou a fauna do parque. Pensei que
tipo de comemoração seria aquela, até pela manhã saber que havia uma reunião
desses zumbis pedindo intervenção militar, negando o resultado eleitoral,
marchando e entoando palavras estranhas diante do quartel – o mesmo onde
dezenas de pessoas foram presas e torturadas e mortas durante a ditadura
militar. As bombas vinham de lá. Creio que eles tinham comprado para comemorar
a eleição do coisinho e como ele dançou foram usar para gastar e perturbar. Mas
devia ser um caminhão, um caminhão de pólvora. uanta comida daria para ser
comprada. Mas eles quiseram fazer barulho, perturbar, sentirem-se fazendo
guerra.
Fiquei mal mesmo, de verdade. Doente, de cama. Depois
acompanhando os movimentos pela tevê, os bloqueios e a violência, só piorei. E
a pergunta que faço há meses continua. De onde saiu essa gente? Vocês devem ter
visto nas redes os compilados e gravações desses movimentos em todo o país
juntando grupinhos de alucinados quase se auto chicoteando, se imolando, alguns
de joelhos rezando e gritando, outros marchando para lá e para cá irradiando
ódio. Todos de verde e amarelo batendo no peito como se fossem só eles os
patriotas. Um movimento claramente incentivado e organizado dias antes das
eleições.
Porque natural, ah, natural não era! Natural mesmo foi o
mar de gente tomando a Avenida Paulista cantando e dançando feliz durante toda
a noite depois do resultado oficial, sofrido, mas vitorioso para quem não
aguentava mais esses quatro anos de ataques e retrocessos. Também moro perto,
há um quilômetro, do MASP, na Avenida Paulista e daqui de casa ouvi a
repercussão da festa. Depois, na madruga, dava pra escutar até o show da
Daniela Mercury, de quem não gosto nada, mas achei até legal ficar ouvindo
daqui da janela. Combinou com a festa toda. Natural também já tinha sido no
sábado, e este movimento eu presenciei, dia anterior ao segundo turno, a mesma
Paulista ocupada por milhares e milhares de pessoas de todos os tipos
acompanhando o último evento da campanha de Lula e da Frente Democrática. Todos
sorriam, se cumprimentavam, cantavam, num clima realmente de confraternização.
Uma diferença enorme.
Começamos então a ouvir falar da transição de governo e
agora entendi meu sonho desta noite. Simbolicamente estava arrumando minhas
malas para esse novo tempo. Bem sei, nem vem! Não é que muita coisa vá mudar
mesmo, estou acostumada com a política, e já dei muita risada com o Centrão
imediatamente abandonando a barca e tentando subir nesse outro governo.
Mas outras cores – todas, na verdade, o arco-íris – chegam
e podem ser usadas. Sem medo de ser feliz, sem o ódio e a ignorância que se
incutiu nas mentes de forma tão deplorável e ignorante como o fez o tal
bolsonarismo.
Ufa! No meu sonho, então, me preparava para outra viagem: a
de novamente continuar a ser oposição, como já disse, a tudo o que for ruim,
esse o papel da imprensa. Conheço bem os perigos dos tais ídolos de barro.
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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação,
editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano - Bom para mulheres.
E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).
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