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Montezuma Cruz

Ameaçado por grileiros, jornalista depõe na CPI


MONTEZUMA CRUZ  — Fazendeiros do Acre dispensavam um tratamento frio a Elson Martins da Silveira, correspondente de O Estado de S.Paulo em Rio Branco. Faziam parte do poder no estado e não gostavam de ser criticados. Nascido ali, estudioso dos problemas amazônicos, e sem dever nada a ninguém, o jornalista fora convidado a depor na CPI da Terra, aos 38 anos de idade, por indicação do deputado federal Nosser Almeida (Arena-AC).
Mais de três décadas depois da transformação dos seus seringais em pastagens, este Estado tem 14 mil sem-terra. Aos 68 anos, Elson Martins não alimenta ilusões. “O Acre está bem, hoje, mas longe ainda da desejada sustentabilidade econômica, ambiental, cultural, social, ética e política. Ainda não saiu da linha de riscos”, alerta.
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Elson Martins: depoimento e filme sensibilizam deputados /ÁLBUM DE FAMÍLIA
Grileiros, fazendeiros, advogados, capatazes e jagunços levados de fora constituíam o quadro de hóspedes cativos do Hotel Chuí, arrendado do governo estadual por Nosser e um irmão empresário. O deputado também não demonstrava nenhum entusiasmo pelo trabalho do repórter regional do Estadão.“Todos me odiavam acusando-me de divulgar notícias negativas sobre o ‘progresso’ que estavam trazendo para a região”, diz Elson à Agência Amazônia.
O Estadão publicava uma seção denominada Terras, sempre presente no sumário publicado na primeira página. Nela, o País tomava conhecimento da grilagem, do desmatamento, das queimadas e da escravidão de mão-de-obra nos antigos seringais do Acre — áreas que haviam passado para as mãos dos fazendeiros do centro-sul.
“Eu enfrentei situações de risco no Hotel Chuí, uma delas testemunhada pelos jornalistas Élio Gáspari e J. Kandell (então correspondente do New York Times na América Latina). Fui encontrar-me com eles no hotel e o gerente me impediu duas vezes, chegando a me ameaçar com um revólver. Contei o fato e Gáspari foi me apanhar em casa para a gente entrar junto no hotel. O cara veio em cima de mim e Gáspari deu um esculacho nele. Ele me pediu desculpas e ofereceu uma água mineral”, relata.
Élson lembra mais histórias: “Em outra ocasião, um sujeito loiro, magro e alto me surpreendeu na frente do hotel e me empurrou com um exemplar do Estadão tapando meu rosto. Você vai continuar me chamando de jagunço? – ele indagou furioso. Minutos depois, foi contido por seu patrão”. O valentão era Carlos Sérgio Zaparolli Siena, morto alguns meses depois pelos posseiros do seringal Nova Empresa, nas imediações de Rio Branco.
Poder conivente com a expulsão
Você estava preparado para ir ao Congresso Nacional? Elson responde que o colega de jornal Lúcio Flávio Pinto, correspondente em Belém (PA) depôs antes dele e o alertara sobre um deputado provocador, ligado ao regime militar. Era Siqueira Campos (Arena-GO), que procurava o tempo todo levar o depoente a uma enrascada.

“Levei um catatau de documentos para provar que o Acre fedia a pólvora e que seringueiros e índios estavam sendo expulsos de suas terras com a conivência dos poderes estadual e federal”, conta.
Durou sete horas o depoimento ouvido por deputados, assessores, convidados e agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI). Estes, não convidados.

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Hotel Chuí, em seu projeto original: palco de ameaças ao correspondente do Estadão / IBGE
O jornalista chegou a denunciar o general Oscar Jeronymo Bandeira de Melo, que estaria envolvido na grilagem de terras indígenas no Vale do Juruá. Melo presidiu a Fundação Nacional do Índio de junho de 1970 a março de 1974. Por causa disso, o deputado Walber Guimarães (MDB-PR) pediu garantia de vida para Élson durante a sua permanência na capital brasileira.

No filme, queima de barracos

Dois anos antes da CPI, o Grupo Tarefa da Amazônia, órgão do Ministério do Trabalho dirigido por José Smith Braz, entregava ao governador Geraldo Mesquita (Arena) um relatório mencionando o “estado conturbado”. Nessa ocasião ocorreu a invasão do Seringal Nova Empresa, próximo a Rio Branco. Mesquita declarava: “Se Rondônia se cansa de ser invadida pelos migrantes, mandem eles para o Acre, que estamos de portas abertas para recebê-los”.

Elson falou das 17 horas às 23 horas. Leu um texto e exibiu um filme (feito por Augusto Sevá) sobre os conflitos nos seringais.  Havia acompanhado a equipe de filmagem até o seringal Nova Empresa, onde diversas famílias ameaçadas abandonaram as terras. Chegaram a filmar barracos queimando por ação dos jagunços. Quando entrevistavam algumas dessas famílias na BR-364 no trecho entre Rio Branco e Sena Madureira foram assediados por jagunços.
“Despistamos, guardamos o equipamento e pegamos a estrada de volta, mas eles nos seguiram, e então estabelecemos uma corrida cinematográfica. Fomos salvos pela poeira”. Nós e Eles foi exatamente o título dado ao filme. Sevá foi editá-lo na França e voltou. Quando se dirigia para o Congresso Nacional, andando na rua para pegar um táxi, encontrou o amigo com o filme na mochila, montado e inédito. “Propus e ele topou exibi-lo durante o meu depoimento. Foi um grande sucesso”.
Sindicalismo
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Pastagem pôs fim a muitos seringais no Acre, a partir dos anos 70 / IBGE
O que mudou no Acre desde a CPI da Terra? “Muita coisa. Não existe mais seringueiro submetido a seringalista no Estado. Eles se tornaram donos de suas colocações nos seringais que compõem as reservas extrativistas, ou nos assentamentos extrativistas do Incra. Mas ainda restam cerca de 14 mil famílias sem terra no Estado, a maior parte delas vindas de outras regiões do País. O Incra mudou pouco nesses últimos 30 anos. É um órgão corrompido e atrapalhado em suas ações. Já devia ter sido extinto”, lamenta.
Seringueiros, ribeirinhos e índios acreanos se tornaram ‘libertos’, o que para Elson representa um grande avanço. Mas ressalva que, além de muita terra, os fazendeiros também conquistaram poder e reconhecimento na região: “Eles são os mais ricos daqui, chocando imensos latifúndios e avançando de forma sutil sobre a floresta”.
Armadilhas
“Agora falam em desenvolvimento sustentável, em manejo e produção de madeira certificada, mas isso me parece mais história para boi dormir. As organizações sindicais que ganharam projeção nacional e internacional com Wilson Pinheiro e Chico Mendes nas décadas 70 e 80 do século passado não são as mesmas. As novas lideranças se vêem envolvidas em planejamentos estratégicos cada vez mais sofisticados e não conseguem distinguir quem é parceiro de quem. E continuam montando armadilhas contra eles”, critica.
Pinheiro foi presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia. Chico Mendes presidiu o sindicato de Xapuri. Ambos foram assassinados.
Elson reconhece um inegável avanço no campo político o fato de o PT formar e capitanear a Frente Popular do Acre com 13 partidos de diferentes matizes ideológicos ajustados a um projeto de governo dito sustentável.
No entanto, observa que, embora o PT organizasse o Estado, assegurando melhoria de vida de um modo geral, não soube avançar interna e democraticamente nessa Frente. “Eu diria que o Estado se livrou dos velhos patrões, submetendo-se a patrões novos, inteligentes, modernos, que ouvem cada vez menos as vozes da tradição”.
Sabor de velho
Para o jornalista, o Acre chama atenção por sua ambigüidade: “É, ao mesmo tempo, um estado tradicional e moderno, o que o capacita para dar saltos surpreendentes na direção do novo com sabor de velho. Mas isso pressupõe a prática do diálogo entre saberes, o que não vem acontecendo”.
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Seringueiro no Acre não se submete mais a seringalista /IBGE
“A tecnoburocracia, a academia, os políticos empoderados,em conluio com outros poderes institucionalizados, se transformam numa ameaça de difícil visualização, algo que costumo resumir assim: não existe diálogo, mas um confronto entre a modernidade, a ciência e a academia, contra a tradição amazônica. E fica fácil prever quem levará a melhor”.
 
NOTA

A CPI do Sistema Fundiário em 1977 teve 63 audiências públicas e igual número de depoimentos de religiosos, empresários, sociólogos, advogados, técnicos e de dois jornalistas. Na defesa dos posseiros atuavam a Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Igreja Católica, e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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