Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Serpa do Amaral

A BELA E A FERA


Nem tudo é tão normal assim.

Há momentos em que a existência perde totalmente seu eixo da consciência, e ficamos sem saber até que ponto a vida imita a arte ou até que ponto a arte imita a vida.A BELA E A FERA - Gente de Opinião

Estou assistindo ao Fantástico, quando de repente o repórter passa a narrar as façanhas de uma toureira espanhola. A Bela é uma jovem mulher de 23 anos, bonita, esbelta e segura de si mesma. A Fera é um touro cheio de energia, dono de uns chifres pontiagudos e mortíferos.

Ambos adentram a arena e são recebidos com entusiasmo pela galera. Existe entre eles um pacto, o pacto da morte. E o público, sedento de sangue e emoção, está ali justamente para ser saciado e presenciar o desfecho desse ritual de morte milenarmente cultivado em terras flamencas.

Um dos dois terá trágico fim. A Bela, se não souber, com maestria, conduzir aquela massa furiosa de meia tonelada de sangue e músculos, ou a Fera, se se deixar levar pelos gestos hipnóticos da linda toureira, sucumbindo, já exausto, ao golpe de misericórdia que poderá lhe ser desferido ao final do espetáculo.

O juiz autoriza a peleja e é dado início ao embate entre a mulher e o animal. Garcia sabe que, além do touro, está digladiando também com o secular machismo espanhol, e é preciso vencer a ambos para honrar-se diante da Fera e dignar-se diante das fêmeas que assistem a ela.

A BELA E A FERA - Gente de OpiniãoA morte se acomoda no centro do picadeiro e inicia seu balé letal. Ela é a sacerdotisa do culto dos mortos e está ali para dar as bênçãos e boas-vindas aos que comungam seu credo.

O touro parte cheio de ódio rumo à toureira que lhe atiça os nervos com uma mortalha vermelha irritante, mas só encontra o vácuo. Os movimentos da fêmea são graciosos, porém marcados pela cadência precisa de quem conhece a fundo a arte de submeter touro brabo aos caprichos de seu querer. Aos poucos a Fera vai perdendo toda a energia, sendo saudada a toureira com gritos de OLÉ!! Pela massa humana em delírio. Passado um tempo, sua respiração já é resfolegante, de suas narinas parece sair fogo e o brilho de seus olhos reflete o pedido de clemência de quem vai morrer a troco de nada. Galopando pra lá e pra cá, a Ferra vai sendo preparada para a cena final do auto de imolação.

Por trás da performance angelical da mulher esconde-se, à sombra de seu coração contraditório, a figura da exímia matadora. Ironicamente, à medida que o touro vai se desvanecendo, o ritual de vida e morte começa a subverter seus papéis.

Quem, no início da luta, aparentava doçura e fragilidade, agora esnoba garra e poder. Quem deixava transparecer altivez e imperturbável força sem doma, agora se mostra derrotado, vencido pelo cansaço e pelo galope escabroso, prenúncio de uma execução que se aproxima a passos largos.

Por fim, a hora é chegada. O animal, cambaleante, mal consegue se manter em pé. Garcia dá-lhe as costas e acena para o público, numa demonstração de coragem. Em seguida, volta-se para sua vítima e procura-lhe os olhos. É a senha. O animal combalido avança lento em sua última investida e é abordado certeiramente pela lâmina que se instala traiçoeira em seu corpo, que cai de joelhos numa súplica que já não tem mais sentido de ser. Antes que o coração esboçasse o aval do perdão, a mão cega executou a pena de morte naquela ensolarada tarde de sábado, numa Espanha que se quer mais civilizada e menos primitiva, que quer esquecer o generalíssimo Franco e eternizar Pablo Picasso.

Desligo a TV e vou para o quintal olhar a lua cheia que me intriga o pensamento...
 

Gente de Opinião Gente de Opinião


Fonte: Antonio Serpa do Amaral Filho / antonio.serpa@trf1.gov.br
Gentedeopinião / AMAZÔNIAS / RondôniaINCA / OpiniaoTV / Eventos
Energia & Meio Ambiente
/ YouTube / Turismo / Imagens da História

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoDomingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Diálogos insanos da pandemia

Diálogos insanos da pandemia

No infortúnio da solidão atroz, o jeito é quedar-se nu com a mão no bolso, olhando para as impassíveis paredes que miram, espiam a gente até de rabo

Um dia da caça, outro dos “povos novos”, de Darcy Ribeiro

Um dia da caça, outro dos “povos novos”, de Darcy Ribeiro

Num primeiro voo de radiofusão para além das plagas amazônidas, a Música Popular de Rondônia começou a ser mostrada na Rádio BBmusic, da cidade Búzi

As lágrimas internacionais que choraram a morte do poeta

As lágrimas internacionais que choraram a morte do poeta

A democracia voltou a ser ameaçada no país cujo nome é uma homenagem a Símon Bolívar, o Libertador das Américas. Com essa última quartelada, já são

 Os homens do poder sempre passarão; o bom humor, passarim!

Os homens do poder sempre passarão; o bom humor, passarim!

Apesar do vazio cultural, da perda irreparável para o humanismo e para a criatividade brasileira e do profundo incômodo emocional provocado pela par

Gente de Opinião Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)