Terça-feira, 24 de agosto de 2010 - 13h37
Por Antônio Serpa do Amaral Filho
Se em Olinda tem o famoso Bacalhau do Batata, nós temos o bloco Pirarucu do Madeira. Se o Rio de Janeiro se gaba de ter a Banda de Ipanema, nós possuímos a Banda do Vai Quem Quer. E se na cidade de São Paulo tem os Demônios da Garoa, nós aqui em Porto Velho temos os Anjos da Madrugada. Com eles dando um show na calçada do Bar do Zizi, no Mercado Cultural, a noite de sexta-feira ficou hiper-animada, levando as pessoas que viram a balada a aplaudirem com entusiasmo o grupo musical que passionalmente incendiou o terreiro do samba. Eles chegaram assim de mansinho, como quem não quer nada, e quiseram e conseguiram tudo: entornar a boa dosagem de lirismo e nostalgia que a civilização brasileira herdou do sangue lusitano – além da sífilis, claro, como diria Chico Buarque de Hollanda e Ruy Guerra.
Eles tocam essencialmente bolero, mas isso não lhes impede de contemplar o público com uma série de outros gêneros musicais da lavra brasileira e internacional. No palco, o grupo se apresentou vestido todo de branco, querendo transparecer uma certa pureza angelical, mas de anjos eles não têm nada, pois são o cão chupando manga, tocando o zaraio no meio do mundo, quando acionam seus baixos, suas vozes carregadas de emoção, suas congas, bongôs, violões e teclados para detonar o baixo-astral e pregar no púlpito da diversidade musical sua mensagem seiscentista: carpiem die. Isto é, aproveitem o dia de hoje na paradoxal página do presente eterno. Latinos são os Anjos: cantam com o coração em apaixonada performance interpretativa. Saltam de um “Bésame Mucho” para um “Tell me Once Again” com espantosa naturalidade, deixando um único liame explicativo – o romantismo, em alguns momentos piegas, que lhes transborda o caldeirão sentimental. Proclamam-se seresteiros por excelência, mas fazem bem humoradas incursões no xote, no samba de Noel Rosa e no território da Jovem Guarda como se Meu Carro é Vermelho fosse um hit parade inventado na semana passada. Boêmios versáteis é o que são.
Arregaçando o espaço do samba pelo avesso, a companhia musical Anjos da Madrugada esteve em cena, dia 20 de agosto, no projeto cultural mais badalado do final de semana em Porto Velho: a Final Flor Samba, capitaneado pelo “Poeta da Cidade”, o cantor e compositor Ernesto Melo. A mostra musical acontece toda sexta-feira, a partir das 20 horas, no Mercado Cultural, no centro histórico da capital, com o patrocínio da Fundação Iaripuna.
Apresentando-se no quadrilátero cultural do centro antigo de Porto Velho, todos eles estavam impecáveis, é vero. Mas é preciso separar o joio do trigo e distribuir o pão do talento a cada um, segundo o quinhão que cada um desses artistas merece: o intérprete Waldemar Nazareno, cativante e cavalheiresco, vencedor de um concurso regional que o levou a se apresentar no programa do Raul Gil, como representante do Estado de Rondônia, conquistou o público o presenteou com toda sua competência, sensibilidade vocal e seu jeito carismático de se locomover no palco; Altair dos Santos, o Tatá, Presidente da Fundação Cultural Iaripuna, mostrou com quantos paus se faz uma cozinha bem temperada, utilizando congas apimentadas, bongôs com cheiro verde e ataques de execução precisos e graciosos, bem como a expressão de risos no ar, descontraindo o ambiente como se estivesse tocando tambor de caixa num boi-bumbá qualquer dos terreiros de Calama, na região do baixo Madeira. Roberto Matias, baterista habilidoso e afrodescendente, tranqüilizou o grupo ao garantir a cadência e o fluxo rítmico que as músicas requerem para provocar agradabilidade entre os ouvintes da troupe; o tecladista e também vocalista Charles Kazan, dono de voz poderosa e bem tonificada, é músico de mão cheia, contribuindo para que os arranjos tivessem requinte e personalidade na apresentação dos angelicais. Dando um show de suporte harmônico à banda, encontramos Edmar Jucá. O experiente guitarrista, esperto e antenado no que o povo gosta, usou e abusou de seqüências harmônicas e acordes que dão qualidade e comunicabilidade ao discurso plástico das peças musicais. No baixo, a tranqüilidade em pessoa: o tarimbado Sérgio Santos fazendo a cobertura dos acordes sonoros produzidos pela guitarra de Jucá e pelo teclado de Kazan. Não se sabe ontologicamente qual o sexo dos anjos em geral, mas em se tratando de Anjos da Madrugada cada um tem o seu bem definido. Priscila, por exemplo, vocal do pelotão de frente da companhia musical, é a única, dentre esses espíritos celestes e mensageiros de Deus, a representar o sexo feminino na pândega. Afinada, animada, simpática e plugada no que faz, ela encantou aos olhos e aos ouvidos do respeitável público que tomou de assalto quase todos os recantos da Praça Presidente Getúlio Vargas.
Os Anjos da Madrugada têm esse nome porque no nascedouro da carreira musical desses bambas do bolero e da MPB está o fato de terem pertencido ao Movimento da Juventude Católica, que tinha por base eclesial a paróquia de Nossa Senhora das Graças, depois do bairro Quilômetro Um. Hoje, comemorando vinte e dois anos de pé na estrada, eles vão de peito aberto aonde o povo está. Não têm medo da crítica. Não têm medo da vida. Tocam de tudo. Até brega, se o brega é de boa qualidade e agrada ao público. Executam boleros se preciso for, para que a romântica atmosfera da noite cresça no coração do homem e ele se sinta satisfeito e realizado, amante e amado, entre um trago no copo e o balanço de um corpo bom colado ao seu, no desvairio da eterna busca pela felicidade.
Dizem que são anjos, e são mesmo. Com suas poções mágicas cuidam das pessoas. Com suas beberagens melódicas e farmacológicas curam as chagas e as dores dos populares que os assistem. Sob suas asas, por um breve momento o mundo é tomado pela bandeira branca das colcheias, fusas e semifusas que decolam do pentagrama como se fossem pombas da paz derramando bênção musical sobre o corpo de quem os vê assim maduros, de bem com a vida e cheios de vontade de fazer o povo feliz. Cantando, são embaixadores da esperança. Se apresentando nos palcos da vida, são operários do fazer artístico, saltimbancos do lúdico, invadindo a praia da Fina Flor do Samba. Tocando, são espíritos de luz em meio ao irracionalismo político-administrativo que está lançando este Estado ao fogo desmedido da ganância. Concebendo sua arte, são deuses terráqueos fazendo das tripas coração para que o homem se redescubra divino também, e não ataque a natureza de forma cruel como eles bem testemunharam na esfumaçante noite em que se apresentaram, sob o olhar perdido e triste do Pai dos Pobres, cujo busto chorou de tristeza vendo a sensibilidade humana virar cinzas.
O fato é que na exibição do último capítulo da maior novela musical do Estado de Rondônia, a Fina Flor do Samba, sexta-feira passada, no Mercado Cultural, anjos que voam na hora da garoa, ao som de boleros, mambos, rumbas, xotes e samba-canção, exorcizaram os demônios da madrugada com a entonação de cânticos sacros e profanos das únicas igrejas que são unanimidades entre os tupiniquins: os seguidores do bolero dos últimos dias e a santa música popular brasileira. Quem são eles, final? São Anjos da Madrugada ou o Cão chupando manga meio dia em ponto? Não se sabe. Diz a lenda que são gente como a gente, que pecam, que sonham, que amam e que cantam...
Fonte: Antônio Serpa do Amaral - antonio.serpa@trf1.jus.br
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