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Gente de Opinião

Serpa do Amaral

Augusto Boal está morto. Viva o teatro do oprimido!



Descamisados do Brasil e do mundo, uni-vos em réquiem à alma do embaixador mundial do teatro. Em cartaz há 78 anos, Augusto Boal saiu de cena neste final de semana para participar de uma turnê nos palcos intemporais do cosmo. Num tempo em que, de Londres, Caetano Veloso cantava go looking for flying saucers in the sky e Gilberto Gil mandava aquele abraço para o pessoal de Realengo, onde esteve preso, esse carioca e cidadão do mundo percorria como poucos errantes andarilhos os caminhos de nuestra américa, pregando a devoção à dramaturgia revolucionária. Ainda não estava tudo dominado e a inAugusto Boal está morto. Viva o teatro do oprimido! - Gente de Opiniãodignação jorrava à flor da pele. Uma avalanche de criatividade e sonhos peitava o Regime Militar de 64 e dava a impressão de que a República Socialista Brasileira estaria logo ali na próxima esquina do tempo – como chegou a anunciar Luís Carlos Prestes. Fazer do oprimido um protagonista da sua própria história era o sonho de Boal. Nesse contexto, podemos dizer que, se os gregos inventaram a tragédia, caberia a ele, por amor à humanidade, a honra de conceber a dramaturgia da liberdade. Em sendo o Zé Limeira o poeta do absurdo, o criador do teatro do invisível haveria de ser Augusto Boal. Para ele, a magia do enredo e o desenvolvimento da trama ganha força na denúncia do calcanhar de Aquiles do sistema:  a exploração e dominação ideológica das massas pela burguesia, dona do Estado e do Capital.  Mais que arte engajada, o teatro do oprimido era um grito de guerra contra o capitalismo selvagem e a Ditadura Militar, num cenário histórico em que, para o General Geisel, por exemplo, a morte do jornalista Vladimir Herzog nos porões do Doi-Codi teria sido apenas "um acidente de trabalho".  Para enfrentar gorilas dessa estirpe, Boal não estava sozinho. Dentre muitas frentes de ação, atacava pelo flanco esquerdo o educador Paulo Freire com sua subversiva pedagogia do oprimido. Nas salas de vanguarda, como os politizados Teatro Opinião e Arena, ecoavam as vozes de Zé Kéti (eu sou o samba/a voz do morro sou eu mesmo sim senhor) e João do Vale com Carcará, pega, mata e come, enquanto Lamarca e Carlos Marighella pegavam em arma e ensaiavam a revolução.

Em Porto Velho, o poeta Mado e a atriz Ângela Cavalcante foram, em época não muito remota, os porta-vozes do teatro do oprimido nestas bandas da amazônica ocidental. Com eles a arte cênica do terceiro-mundo perambulou praças, escolas, bares e palcos improvisados da cidade, dando vida à trama tecida no calor da luta pela dignidade do povo brasileiro. Uma idéia na cabeça, um texto e um pretexto, no tablado que encena o auto onde todos são chamados a atuar, contracenando e protagonizando a peça real da existência – anarquicamente, como convém aos atores de sua própria alforria. Se para Honoré de Balzac a vida é tão-somente uma Comédia Humana, para Boal ela constitui-se no palco onde o descamisado, o alienado e sans-cullote podem redimensionar roteiro, dar pitaco, imprimir sua voz e engajar-se como personagem vivo da novela folhetinesca do mundo, posto que, na interação cênica, libertando a si, liberta o homem o seu semelhante, libertando a sociedade, que liberta a todos. Essa era a utopia de um fazedor de arte para quem a quintessência do belo era fazer do homem autor e diretor da sua própria farsa, drama ou comédia. Augusto Boal está morto. Viva o teatro do oprimido!

Por falar nisso, cadê a voz dos oprimidos dessa foz???

Fonte: Antônio Serpa do Amaral Filho


 

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