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Gente de Opinião

Serpa do Amaral

BUBU NUNCA CANTOU NUM TEATRO


 
Por Antônio Serpa do Amaral Filho


Ao se apresentar na Quinta Cultural patrocinada pelo Banco da Amazônia S/A, o intérprete Jesuá Johnson, filho de uma das mais tradicionais famílias de Porto Velho, confessou em público: “Eu estou muito feliz de estar aqui com vocês; eu nunca cantei num teatro”. E riu, e rir, e ria da sua radical e genuína declaração. E o povo sacou muito bem que o papo era de coração pra coração. Por isso, o público gostou e aplaudiu a sinceridade do artista, exposta a queima-roupa, sem os arranjos do racionalismo. Até porque era mesmo a primeira vez que ele pisava no palco de um teatro, o Teatro Banzeiros, recentemente inaugurado pela prefeitura municipal de Porto Velho. Bubu já passou dos 50 e deve estar próximo aos 60 anos de vida. Criador do lendário Projeto Cinco e Meia e produtor cultural por mais de três décadas, ele agora resolveu ser cantador. BUBU NUNCA CANTOU NUM TEATRO  - Gente de Opinião

Prisma Luminoso é o nome do seu espetáculo - uma homenagem, supõe-se, ao mestre Paulinho da Viola, que tem um disco com o mesmo nome, conforme sacou o jornalista Zola Xavier da Silveira, em conversa de bastidores, enquanto gravava todo o show para um documentário. Quando sobe ao palco ele se faz acompanhar de Norman Júnior, no violão de seis cordas; Nicodemo, no violão de sete; Genésio, no cavaquinho; e Júnior Lopes, na bateria. Foi com esse time de bambas que ele, dia 24 de setembro passado, como se grego fosse e saltasse do mito para o logus, apresentou-se para uma casa cheia, cheia de gente, cheia de luz e sensibilidade, cheia, enfim, de pessoas felizes por vê-lo ali no palco, reluzindo como uma pérola negra a serviço do belo, da inteligência e da criatividade brasileira. Ana Aranda, sua mulher, Mayela e Verinha, seus rebentos, de certo foram, no seu íntimo, os homenageados daquela noite.

Como se fosse um babalorixá do terreiro do Samburucu ou Santa Bárbara, entoando canto inicial da ritualística de umbanda, ele homenageou seus antepassados e todos os mortos representados em cada dormente da Ferrovia do Diabo, e cantou pausada, solenemente e em capela: Você Precisa Ver/Para Saber Como É/Que andava o Trem na Madeira-Mamoré! Conquistado o coração da platéia com essa abertura, ele saltou do trem e correu trecho até chegar ao bairro do areal para contar um pouco das travessuras de um certo “moleque atrevido, pior que bandido, que se criou no areal”. Desfolhando os versos do poeta Dadá, ele confessou à galera que “assistiu a destruição da Baixa da União pelos Generais”, entrelaçando aos acordes as sacadas críticas e a visão histórica do autor de A Sobra das Noites. Do passeio pelo samba crítico dos compositores Guaporés ele foi ter com os grandes mestres da chamada música popular brasileira. Cantou Noel, Paulinho da Viola e Chico Buarque. Cantou Elton Medeiros, Ney Lopes, Cartola e Nelson Cavaquinho, e tantas outras páginas antológicas da musicalidade tupiniquim.

Bubu, o Cristo Negro, cujo nome de batismo “Jesuá” deriva, segundo alguns pesquisadores, da forma “Yeshua”, em aramaico, e quer dizer Jesus, realmente nunca foi cantor de teatro. Ele sempre foi cantador de boteco, puxador de samba de botequim, sussurrador de bossa-nova em clubes da esquina e contador de prosa em mesa de bar, lugar onde o homem é mais sincero, no dizer do jornalista e aprendiz de filósofo Paulo Queiroz. Como homem negro e descendente direto de barbadianos, nascido da união de Norman e Elvira Johnson, ele deve ter ouvido suas primeiras cantorias de ninar na língua de William Shakespeare. Teria nascido para ser jogador de basquete – sua grande prática esportiva quando moço -, mas um anjo safado, um chato de um querubim sussurrou no seu ouvido coisas que ele só entenderia mais tarde, tomando a saideira com Dadá e Flávio Carneiro no oitavo botequim. Ouvidor de Milton Nascimento e James Brow, Paulinho da Viola e Cartola, teve sua musicalidade forjada e construída nos bares da vida. Quando adquiriu consciência política da problemática social da gente de Zumbi, fez sua própria cabeça de negro e foi à luta, militar nos movimentos da causa da raça negra. De bar em bar, na convivência com notívagos, com poetas e com a música jorrando ao vivo, nua crua, sem efeitos de estúdio nem reverberações acústicas e tecnológicas, Bubu fez escola de canto na boêmia e foi nela que aprendeu a modular a voz, a imprimir ritmo e movimento ao frasal cantado; a conceber emoção, admiração e fantasia ao mais simples enunciado de um samba acompanhado em caixa de fósforo. A noite lhe serviu de conservatório. Aprendeu com Noel que o samba não vem do morro nem lá da cidade. Da Bossa-Nova ele incorporou a malícia de fazer de conta que está cantando, quando na verdade está apenas confidenciando baixinho, em sussurro, suas mágoas de amor. Tomando uma aqui, outra ali no bar da esquina, ele entregou seu coração à arte do canto, que construiu ninho em sua alma e impregnou todo seu ser, transformando-o num cantante nada técnico, nada convencional, mas extremamente sensível, intuitivo e bêbado de paixão por um lugar ao sol à mesa do melhor da música popular brasileira.

Bubu definitivamente não nasceu para cantar. Mas ao entregar sua alma aos rituais de magia em noites de lua cheia, em meio aos homens vazios que enchem os bares do mundo de vida e espiritualidade, quando a cidade dorme, passou a cantar como quem precisa respirar para viver. Elegeu o coração, e não a boca seu principal instrumento vocal. Luminosa fez-se sua alma. Sedento de verdade é seu espírito, na canção. Cantou e encantou a todos, sem nunca ter cantando num teatro. É messiânico ao cantar, lançando bênçãos de bem-aventurança sobre si e para os que o ouvem. Cantando, o Cristo Negro, por sessenta minutos, tem o dom de perdoar todos os pecados do mundo. O único pecado original permitido é o de invocar os deuses brancos e negros da poesia. Por isso essa sua força estranha. 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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