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Serpa do Amaral

CABARÉ TAMBÉM É CULTURA



Antes de morrer, Esron Meneses disse que Aluízio Ferreira, o maior cacique político da história de Rondônia, era também o maior caçador de rabo de saia destas paragens. Contava Dionísio Xavier da Silveira, o Velho Dió, que certa vez um navio atracou em uma de nossas barrancas carregado de prostitutas e que o desembarque das meninas fora embargado pelo delegado de polícia, a pedido de uma alta autoridade eclesiástica católica, em nome da moral e dos bons costumes. O sexo, tanto quanto o poder, move e comove o mundo. Sexo e poder se movem conjuntamente desde que o mundo é mundo. Assim como existem operários que fazem funcionar as máquinas da produção de riqueza, para se fazer funcionar a máquina operacional da fábrica de prazeres, precisa-se de operárias do sexo. A mais famosa delas, Maria de Madala, ou Maria Madalena, a pecadora, teve a graça de receber, em momentos de apuros, a intervenção pessoal do próprio filho de Deus, o Cristo Nazareno, Rei dos Judeus. Ora, se até o filho do Altíssimo saiu em defesa das damas da noite, quem iria impedir que elas chegassem por estas paragens nos idos de antanho?

Assim, pois, tivemos por aqui, como muito bem relata o articulista Anísio Gorayeb, as nossas famosas casas de prostituição, administradas pela tríade Maria Eunice, Tartaruga e Anita. Cabaré também é cultura. Prostituição é fenômeno social. E dá uma fora de casa de vez em quando é típico do caráter do homem brasileiro, desde que Cabral chegou aqui e os lusitanos, de quem herdamos uma boa dose de lirismo, além da sífilis, se apaixonaram pelas ancas, coxas, peitos e bundas das nossas índias saradas. Com a chegada das negras vindas do Congo, Angola e Moçambique a salada sexual ganhou aditivos ainda mais apimentados, pois é dessa intensa mistura que vai sair o protótipo sexual da mulher brasileira: a mulata boa de samba, boa de cama e parideira – um luxo só, como diria Ary Barroso.

À medida que eclodia o processo civilizatório, baseado na miscigenação dos elementos branco, índio e negro, crescia também o gosto brasileiro pela boêmia e pelo sexo fora de casa. O cinismo moral contraria, claro, os preceitos de nossa tradição cristã, mas, convenhamos, ele é tão brasileiro quanto a feijoada ou o samba, e aquele tem um papel social tão importante quanto estes. Como bons filhos de ciclos migratórios, nós recebemos garotas de programas dos mais diversos rincões do território brasileiro. A Maria Eunice, por exemplo, se não me engano, importava suas moçoilas do Estado do Pará e Amazonas. Outras agenciadoras, como Tartaruga e Anita, traziam suas damas da noite de Cuiabá e Acre. Hoje elas vêm até do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Daí a enxurrada de loirinhas circulando no Baco, Casa das Sete Mulheres e Enigma. No contra-ponto da dimensão social, tínhamos os clubes socytes da época, nomeados por Anisinho: Bancréveas, Ypiranga e Danúbio Azul Bailante Clube. Tanto esses clubes quantos aquelas casas famosas eram, na verdade, facetas opostas, mas paradoxalmente complementares, da mesma moeda. O homem que freqüentava aqueles ambientes chiques era o mesmo que circulava, talvez até com mais intimidade, prazer e eloqüência, nos corredores das casas noturnas, de modo que a razão de existir da tradição, da família e da propriedade coincide e se justapõe na mesma proporção à razão de existir das casas de prostituição: ambas, cada uma a seu modo, desempenham funções orgânicas e sociais, para a mantença mais ou menos harmoniosa da sociedade dos homens. Se no clube social o homem dançava com a esposa, no cabaré ele dançava com a rapariga, para o deleite do seu espírito libertino e sedento de fantasias. Mas não era só isso. Ir ao bordel significava também conviver, desfrutar de um modo de vida, cultivar um círculo de amizades e se relacionar com mulheres que não serviam só para a satisfação sexual, mas desempenhavam também o papel de confidentes, conselheiras, amigas, confidentes e amantes, no mais profundo sentido do termo.

O texto de Anísio revela claramente a vivência dualista e liberal desses papéis pelos nossos seringalistas, políticos, profissionais liberais, funcionários públicos etc. Essa é a função do memorialismo, oferecer material contextual à crítica e à análise sociológica do fenômeno. É claro que na levada da leitura emerge uma boa dose de nostalgismo, até porque também tive meu batismo de guerra no quartel-general de Maria Eunice, na rua Dom Pedro II, aos 13 anos, quando, levados por amigos do velho Serpa do Amaral, pisei pela primeira vez naquela casa famosa e misteriosa para os infantes da época, sendo recepcionado pela própria Maria Eunice, que se mostrou agradável, respeitável, educada e simpática anfitriã. Foi à tarde, quando as mariposas ainda se preparavam para a longa jornada da noite. Pelo figurino da etiqueta social, como filho da classe média, a minha iniciação sexual deveria ser mesmo num bordel, à conta de não haver em casa uma empregada que pudesse desempenhar à altura tal mister. No entanto, apesar da lembrança pessoal, o foco principal é o contexto reconstruído pelo articulista. Dele emanam uma série de elementos que perfaziam a realidade circundante da Porto Velho provinciana do final dos anos 50. Esses elementos, embora invoquem certo espírito pitoresco na abordagem do tema, devem servir para que tenhamos uma compreensão da vida enquanto processo histórico. Não basta lembrar da belíssima Cabaço de Aço (Raimundinha) e da Paquinha, mitos sexuais de antigamente. O desafio é compreender a sociedade de ontem, entender a Porto Velho de hoje e vislumbrar a cidade humanizada que queremos edificar no futuro.

Ao cavoucar no baú de suas lembranças, o articulista Anísio Gorayeb não quer ser apenas pitoresco ou engraçado, nostálgico ou saudosista, ele deve querer principalmente remontar arqueologicamente as contextualidades que compunham o cenário urbano daquela Porto Velho em que as principais cafetinas eram conhecidas de toda a população pelo nome e sobrenome e até, como bem testemunha o caso da Tartaruga, recebiam tratamento dispensado às mulheres da alta sociedade – “Madame Elvira”, assim era tratada a popular Tartaruga no convívio social. Reviver a estória dos velhos cabarés é mergulhar nas entranhas dos nossos costumes e práticas sociais mais delicadas, visto que, se nosso maior herói, Macunaíma, nunca teve caráter, o sem-caratismo tupiniquim é a marca do pecado, suado, rasgado, praticado debaixo da linha do equador, nas madrugadas infindas em que as meninas da Maria Eunice, Tartaruga e Anita recebiam homens das diversas classes sociais para a prática do ritual da vida. Por mais que se torça o pudico nariz, é elementar: cabaré também é cultura! 

Fonte: Antônio Serpa do Amaral Filho

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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