Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Serpa do Amaral

Habemus Shopping!



Da taberna para o shopping é o mesmo que da caverna para o pop.

Já somos cultura de massa: temos, enfim, a nossa pomposa Catedral do Consumo. O Haiti não é aqui, porque agora já somos sudeste. Enquanto o mundo se descabela com a crise econômica que assola as bolsas de valores, a civilização Guaporé dá o bote e chega ao primeiro mundo da noite pro dia. É o milagre econômico à moda karipuna. Não temos um teatro – é verdade -, mas temos ruínas arqueológicas do que seria um teatro, ruínas da melhor qualidade, mantidas incólumes na Esplanada das Secretarias pelo governador Ivo Cassol – e isso já é alguma coisa.

O consumo, e não o Ser, impõe-se como o grande problema existencial da província cândido-mariana. Esse senhor, todavia, tem apenas a patente de sacerdote do templo, posto que a Divindade mesmo – o Mercado, onipresente, onisciente e onipotente -, como toda eminência parda, é como orelha de freira: existe, mas ninguém vê, pairando, como alguns monstros sagrados do teatro brasileiro, acima do bem e do mal.

A mega obra mercantilista mudou para sempre a história de Porto Velho. Os historiadores da Unir deverão utilizar, daqui pra frente, as designações AS – para antes do Shopping, e DS, para se referir a fatos Depois do Shopping. Está inacabado e foi inaugurado nas coxas – ninguém pode negar -, mas não importa. Mais vale o mito que o rito, e reza que a transubstanciação da hóstia no corpo do Salvador. O delírio, já diria Galvez, o Imperador Acre, é a nossa sina, ou a nossa crina de cavalo baio que fuja a galope, marchando José, José para aonde...

O trânsito da urbe enlouqueceu de vez. O prefeito nomeou uma comissão de notáveis para discutir o caos. O problema, entretanto, não é a mão única da Calama, sim a lama da calada da noite em que as nossas vozes foram usurpadas sorrateiramente. E já que nada dissemos, nada temos a dizer. Não somos mais os donos da voz. Resta-nos a voz do dono.

Um shopping não é apena um shopping, é uma entidade complexa e envolvente, um modo de vida, um sistema, uma cultura, um sonho ou construção ideológica que embasbaca gregos e bolivianos, seduzindo as massas na mesma proporção que o maior sucesso da banda Calcinha Preta.

À simples notícias de que teríamos nestas barrancas esse ícone do tribalismo urbano, Porto do Velho entrou em polvorosa. Embratel e Pedacinho de Chão na hora reajustaram o valor de seus imóveis em pelo menos 80%. Em seguida, teve início a queda-de-braço entre o “shopping dos Canadenses” e o grupo Calixto, e a cidade passou a viver momentos de febril ansiedade e indefinições. As especulações passaram a jorra em cascatas; a comunidade política fragmentou-se em alas pró  contra o “shopping dos Canadenses”, político acusou prefeito, prefeito processou político, e todos tomaram partido da situação, envolvendo desde os empresários da Fiero e da Associação Comercial aos pés-inchados do mercadinho do Quilômetro Um.

Porém não foi a dúvida cruel sobre quais as grandes lojas se instalariam no templo consumista que tomou conta do imaginário popular, e sim uma certa serraria, feinha por sinal, que ousou dizer não à majestosa edificação. E quanto mais a construção avançava, mais desconcertante e contrastante ficava a situação. As pessoas torciam o nariz para decepção de ter um shopping bacana com uma velha serraria encravada nas barbas da Renner e da C & A. Esse povo tem lá suas razões. Por outro lado, seríamos a única capital a ter um shopping com serviço de beneficiamento de pernamanca, mourões e balaústra para cerca de quintal de pobre. Para uns, o japonês (logo o descobriram que o dono do empreendimento é um japa) só sairia dali morto, como herói dos novos tempos; para outros, o oriental ensinava aos nativos que não lutaram para preservação do antigo Mercado com quantos paus se faz a canoa da resistência cultural. Uma outra turma, entregando a rapadura, espalhou boatos que o japa, Kikushi de batismo, queria 3 milhões para lavar da área, e não a merreca dos dois milhões de reais ofertados pelos “canadenses”. Aí a imagem heróica do nisei ficou feia na foto. Mas fazer o quê, se habemus shopping! Somos dopping!

Fonte: Antônio Serpa do Amaral Filho

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoDomingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Diálogos insanos da pandemia

Diálogos insanos da pandemia

No infortúnio da solidão atroz, o jeito é quedar-se nu com a mão no bolso, olhando para as impassíveis paredes que miram, espiam a gente até de rabo

Um dia da caça, outro dos “povos novos”, de Darcy Ribeiro

Um dia da caça, outro dos “povos novos”, de Darcy Ribeiro

Num primeiro voo de radiofusão para além das plagas amazônidas, a Música Popular de Rondônia começou a ser mostrada na Rádio BBmusic, da cidade Búzi

As lágrimas internacionais que choraram a morte do poeta

As lágrimas internacionais que choraram a morte do poeta

A democracia voltou a ser ameaçada no país cujo nome é uma homenagem a Símon Bolívar, o Libertador das Américas. Com essa última quartelada, já são

 Os homens do poder sempre passarão; o bom humor, passarim!

Os homens do poder sempre passarão; o bom humor, passarim!

Apesar do vazio cultural, da perda irreparável para o humanismo e para a criatividade brasileira e do profundo incômodo emocional provocado pela par

Gente de Opinião Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)