Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Serpa do Amaral

Livro Pode Ajudar a Curar a Cegueira do Nosso Olhar


  
O artista plástico Júlio César de Carvalho lançou recentemente a obra “Um Olhar Sobre o Urbanismo e a Arquitetura de Porto Velho”. Com  encadernação de primeira qualidade e objetivo não menos nobre, o livro  traz a proposta de passar em revista uma das mais expressivas formas de cultura do homo sapiens: a concepção arquitetônica com suas formas, materiais, volumes, cores, estilos, ângulos, funções e serventia  social. A obra não se prende a mostragem saudosista das edificações, cantos e recantos porto-velhenses. Trata-se na verdade de uma instigante leitura do autor sobre a formatação urbana que se desencadeou à margem do Madeira, desde o nascimento da cidade até hoje.

O trabalho foi lançado no Mercado Cultural, em solenidade timidamente divulgada e pouco prestigiada pelas autoridades constituídas, e chega ao público em meio ao imbróglio e ao caos urbano em que a cidade está atolada. Daí a oportuna sacada do autor em lançar Um Olhar Sobre o Urbanismo e a Arquitetura de Porto Velho - um inventário histórico, plástico, revelador das nossas facetas geométricas e dos estilos das nossas construções, suas tendências, influências e expressões estéticas no espaço e no tempo.

Um olho na obra de Júlio Carvalho, outro na realidade, vê-se que Porto Velho está irreconhecível. Proporcionalmente, é campeã brasileira de homicídios, de acidentes no trânsito e violência urbana. O povo vive com a tensão à flor da pele, numa situação bem diferenciada daquela descrita em muitas fotos contidas no livro em que Júlio revela uma Porto Velho que não conhecia a palavra estresse, a vida fluía calmamente e as relações tinham mais profundidade e conteúdo. Na foto, a imagem tem o poder de congelar esse tempo bom, para espanto dos incrédulos e orgasmo dos saudosistas.

A construção civil se impõe como principal elemento propulsor da nossa atmosfera urbana. A plástica urbanística da cidade parece o samba do crioulo doido, metamorfoseando-se subitamente como se o mundo fosse acabar amanhã. E nós, como diz o livro de Carvalho, “silenciamos diante do ‘assassinato’ da memória coletiva mais expressiva e visível que é a arquitetura, uma linguagem tão universal que traduz, com grande exatidão, a idéia de uma época e a visão de seu passado.” O choque entre Capital e Trabalho já produz seus primeiros efeitos, e a greve, que antes, na economia do contra-cheque, era feita somente na seara da administração pública, agora eclode como uma explosão atlântica no centro da urbe, quebrando um pouco da monotonia e da cumplicidade em torno dos rumos sociais, econômicos e culturais que o agronegócio e o governo federal nos empurram. Porto Velho é um efervescente canteiro de obras. Os prédios brotam da noite pro dia, emergindo do solo pacto como uma safra surrealista de espigões recheados de ferro e argamassa, manipulados por homens que trabalham feito máquinas tentando executar um desenho lógico à guisa de atender aos interesses do mercado imobiliário – o mais inflacionado do país. Foi-se o tempo em que Raquel Cândido comandava hordas de deserdados e excluídos na promoção de invasões e construção de Caladinhos e outras periferias. Uns dizem que é o fim do mundo. Outros dizem que o progresso chegou, e outros, ainda, denunciam que isso não é desenvolvimento nem aqui nem na conchichina. É burla, circo e falácia. Enquanto os barões da burguesia paulista sonham noite e dia com a chegada da energia do Madeira em seus parques industriais, a nossa medíocre classe política se contenta com as migalhas dos royalties. A visão do povo que antes era praticada horizontalmente agora se espraia verticalmente içada por força da nova angulação urbanística. O olhar proposto na obra de Carvalho não se prende ao senso-comum da descrição pedagógica e iconográfica do conjunto de edificações que foram erguidas nestas paragens desde a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré aos dias de hoje. Os cutubas e pele-curtas sem dúvida sentirão saudades quando se depararem com as cenas protagonizadas por Aluízio Pinheiro Ferreira e Renato Clímaco Borralho de Medeiros – seus líderes. Em suas 178 páginas o livro até cumpre o inevitável mister de ser didático, mas não é só isso, pois também é analítico, dotado de excelente textos e acervo fotográfico de incomensurável valor cultural, e até poderia ser mais crítico, poderia por exemplo se utilizar da voz de autoridade no assunto e ser mais incisivo na defesa do patrimônio histórico, denunciando os crimes de lesa-patrimônio perpetrados por governantes das esferas federal, estadual e municipal – já que Júlio Carvalho entende que “o patrimônio arquitetônico de uma cidade é um capital espiritual, cultural, econômico e social de valores insubstituíveis”.

Dentre outros ângulos e retângulos conceituais, aprendemos com a obra de Júlio Carvalho que as Três Caixas D’água que se postam altivas na praça são testemunhas da influência da Revolução Industrial entre nós. No mesmo diapasão, temos os galpões e o girador da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. O ecletismo dos estilos Arte Déco e Art Nouveau conviveram e convivem com a intuição plástica que o beradeiro aplica às suas edificações de paxiúba e pau-a-pique. O livro sugere, enfim, que, em meio as nuances de barroquismo, neoclassicismo e estilo romano, dentre outros, somos a civilização guaporé marchando e plasmando nossas edificações com anseio de dignidade que repercute da alma cabocla e sede de justiça social que nos salta aos olhos. Em sendo criticamente interpretado, o livro de Júlio Carvalho pode ajudar a curar a cegueira que às vezes toma de assalto nosso olhar sobre a cidade. Com ele, o autor presenteia e sacode o município de Porto Velho por seus 95 anos de idade. Parabéns pra nós.

Fonte: Antônio Serpa do Amaral Filho

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoDomingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Diálogos insanos da pandemia

Diálogos insanos da pandemia

No infortúnio da solidão atroz, o jeito é quedar-se nu com a mão no bolso, olhando para as impassíveis paredes que miram, espiam a gente até de rabo

Um dia da caça, outro dos “povos novos”, de Darcy Ribeiro

Um dia da caça, outro dos “povos novos”, de Darcy Ribeiro

Num primeiro voo de radiofusão para além das plagas amazônidas, a Música Popular de Rondônia começou a ser mostrada na Rádio BBmusic, da cidade Búzi

As lágrimas internacionais que choraram a morte do poeta

As lágrimas internacionais que choraram a morte do poeta

A democracia voltou a ser ameaçada no país cujo nome é uma homenagem a Símon Bolívar, o Libertador das Américas. Com essa última quartelada, já são

 Os homens do poder sempre passarão; o bom humor, passarim!

Os homens do poder sempre passarão; o bom humor, passarim!

Apesar do vazio cultural, da perda irreparável para o humanismo e para a criatividade brasileira e do profundo incômodo emocional provocado pela par

Gente de Opinião Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)