Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Serpa do Amaral

NA TERRA DO FAZ DE CONTA, CURUPIRA VENCE AS ELEIÇÕES


Na manhã em que o céu se fez moldura, seu José procurou se engalanar com o paletó para datas especiais. Não era batismo ou casamento. Era o dia das eleições municipais. José não queria deixar de participar da escolha do destino da cidade. Por isso, precisava usar o seu traje mais elegante. Depois de alguns ajustes, olhou-se no espelho e aprovou a vestimenta. Conferiu os documentos e colocou a carteira no bolso. Seguiu sereno para o destino.

José morava próximo da escola na qual votaria e logo chegou ao local de votação. Não demorou e era a sua vez de votar. Após apresentar o documento pessoal para o mesário, José foi ao córner de votação. Digitou o número do seu candidato e a musiquinha tocou. Sorriu e deu alguns passos em direção à porta e, antes de sair da sala, profetizou: “Para quem ainda duvida, sou bastante realista, por isso, o impossível vai acontecer”.

Outros josés, marias, joaquins, franciscas também votaram imbuídos do mesmo ânimo. Sabiam que o destino da cidade deveria ser decidido naquela data. Não podiam adiar para não se sabe quando a felicidade coletiva. Era o dia do acerto de contas. Nesse clima de maturidade política, a eleição transcorreu sem maiores complicações. Agora, era hora de aguardar a apuração das urnas para saber a decisão do Povo.

Quando o resultado da primeira urna foi encaminhado por meio eletrônico à central de apuração, o técnico responsável pela conferência informou ao conselheiro eleitoral uma ocorrência relevante: “Doutor, aconteceu algo estranho com os dados dessa urna, algo muito estranho”. A autoridade, meio que espantada com essas palavras, retrucou: “Por favor, que fato estranho é esse?”. “Senhor, por incrível que pareça, essa urna tem 100% dos votos para o candidato Curupira”. Todos se olharam sem saber o que dizer. De repente, o telefone interrompeu o silêncio: “Alô, alô, aconteceu alguma coisa com a zerésima da minha urna, só apareceu voto em favor de um tal de Curupira...”.

De modo sistêmico, os mesários de todas as seções informaram à central que os votos foram dirigidos ao mesmo candidato. Pela primeira vez, em uma eleição, um candidato havia conseguido um percentual absurdo de voto. Praticamente 100% dos votos foram para o Curupira. Em razão desse fato, o conselho eleitoral se reuniu às pressas para deliberar sobre o insólito caso. A boataria e a especulação circulavam pelos corredores. A reunião reservada do conselho daria o veredicto para a eleição. E todos do lado de fora queriam ouvir o que se discutia lá dentro.

Enquanto isso, a liga da injustiça aguardava o resultado das eleições com tranqüilidade. O tio patinhas calculava como recuperaria o investimento feito e pensava em construir um cofre maior. A super-poderosa foi ao banheiro para retocar a maquiagem e, nesse intervalo, aprendeu mandarim e participou de uma teleconferência sofre física quântica. O lanterna-verde preparava o anel de energia para transformar a cidade num passe de mágica, assim como ele fez nos mundos em que viveu e nada fez. A medusa ensaiava o discurso para dissimular a sua amizade com o monstro que destruiu a cidade. O hipócrates se refestelava com um espetinho e estava a pensar como saciaria a sua fome de discurso. Os anões discutiam sobre as secretarias que receberiam para apoiar os maiorais. E todos eles nem imaginavam o que estava por vir.

Quando a reunião começou, o presidente do conselho foi enfático: “Não tenho dúvida de que esse fato, apesar de ser totalmente surreal, é uma realidade que nós deveremos enfrentar. Quase 100% dos votos foram para o Curupira. Conversei com os técnicos de informática e o acontecimento não tem causa interna ou externa. Não se trata de um vírus ou de uma programação equivocada da urna. Fizemos testes há poucos minutos com as urnas e elas não apresentam nenhum defeito. Não tenho dúvida de que o Povo votou conscientemente no Curupira". Depois dos debates, os outros conselheiros foram unânimes: “Devemos anunciar a vontade do Povo”.

Depois de quase uma hora, o conselheiro presidente foi ao átrio para o pronunciamento oficial: “Boa-noite, senhoras e senhores, representantes dos partidos e imprensa. Venho aqui em nome do conselho anunciar o resultado final das eleições. Tivemos um caso insólito nestas eleições. Já verificamos todo o sistema e afirmamos com certeza de que não houve nenhuma espécie de erro ou de problemas nas urnas. Depois da apuração de todas as urnas, proclamamos o candidato Curupira como vencedor, com quase 100% dos votos válidos. Essa é a vontade do Povo”.

A liga da injustiça teve um verdadeiro ataque epilético ao saber do resultado oficial. Cifrões se desmancharam ao chão. Maquiagens foram quebradas. Da cartola mágica, saíram lebres e anéis de lata. A cabeça da medusa se desprendeu do corpo e o monstro destruidor fugiu com medo de ser petrificado. Outros fugiram e não pagaram o espetinho. Os anões decidiram pedir asilo político em um circo. E, por incrível que pareça, estava desfeito um ciclo pernicioso para a história desta cidade.

Seu José, ao assistir ao noticiário, sorriu e olhou para sua esposa que tecia grandes esperanças. Ele disse com ar de satisfação: “Minha querida, sabe uma coisa? Eu aprendi nesses longos anos de vida que, quando as autoridades acham útil dizer a verdade, é porque elas não conseguem encontrar uma mentira melhor. Acredito que o Povo finalmente teve coragem para dar um fim a uma época de destruição da cidade e de dilapidação da coisa pública. Creio que nossa cidade, agora, vai deixar de viver no final dos tempos”.

Nas ruas, a população numa efusão de esperança e mudança se preparava para uma nova aurora chamada respeito. Curupira, já ciente da revolução que acontecera, saudou o renascimento da cidade e elogiou seus concidadãos: “Parabéns para nós que escolhemos sem medo de acertar”. "O Povo, ao dizermos não aos que sempre se preocuparam em desrespeitar esta cidade, transformamos o impossível em realidade". Nossas matas, tudo enfim... de volta às mãos do Povo: cantava a população.

Ação Popular: Respeitem Porto Velho!!!

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoDomingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Diálogos insanos da pandemia

Diálogos insanos da pandemia

No infortúnio da solidão atroz, o jeito é quedar-se nu com a mão no bolso, olhando para as impassíveis paredes que miram, espiam a gente até de rabo

Um dia da caça, outro dos “povos novos”, de Darcy Ribeiro

Um dia da caça, outro dos “povos novos”, de Darcy Ribeiro

Num primeiro voo de radiofusão para além das plagas amazônidas, a Música Popular de Rondônia começou a ser mostrada na Rádio BBmusic, da cidade Búzi

As lágrimas internacionais que choraram a morte do poeta

As lágrimas internacionais que choraram a morte do poeta

A democracia voltou a ser ameaçada no país cujo nome é uma homenagem a Símon Bolívar, o Libertador das Américas. Com essa última quartelada, já são

 Os homens do poder sempre passarão; o bom humor, passarim!

Os homens do poder sempre passarão; o bom humor, passarim!

Apesar do vazio cultural, da perda irreparável para o humanismo e para a criatividade brasileira e do profundo incômodo emocional provocado pela par

Gente de Opinião Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)