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Serpa do Amaral

No Trem Vivo de Yêdda, Viriato e Samuel Castiel, a memória beradeira não vai da Candelária ao Jaci



Por Antônio Serpa do Amaral Filho
 
Na despedida do ano velho, Viriato Moura, Samuel Castiel e Yêdda Borzacov juntaram-se para oferecer ao público leitor contos e crônicas de literatura inspirada no fantástico Guaporé, na obra “Trem Vivo”, tendo – óbvio - a lendária Ferrovia do Diabo como mote central de suas criações literárias.
 
Dizem eles ter havido um tempo em que, travestido de padre, Che Guevara, o maior guerrilheiro das Américas, esteve entre nós, tendo sido ciceroneado por Dionísio Xavier e Cloter Mota até a fronteira com a Bolívia. Bubu Jesuá Jonhson não foi o único a ver o trem fantasma; bem defronte ao Cemitério da Candelária uma composição do além assustou, com direito a apito estridente e sinal de luz, passageiros que vinham de Guajará-Mirim. O espírito de Lydia Xavier e Juan Robles vagavam por entre as composições, enquanto um turbilhão de formigas de fogo devoravam, por inteiro, num piscar de olhos, corpos de enfermos do Hospital da Candelária, celebrando, quem sabe, o desaparecimento misterioso de Kleiton Morhy por encantamento de uirapuru ou curupira. Enquanto a manada de sessenta esqueletos bovinos emergia das profundezas do rio Madeira, depois de ser atacada por cardume de piranhas, sob o comando de Fifi Lorotoff, um governador do território, abduzido por extraterrestres, era convencido a promover a EFMM a Patrimônio da Humanidade junto à Unesco, o Capitão Alípio ensinava português aos detentos na base da tortura a palmatória, talvez no mesmo instante em que o soldado Pedro se embrenhava na mata em busca de macaco gogó de sola, e desaparecia para sempre. Boto, boiuna cobra grande, Catirina, Cazumbá, Pai Francisco e a ninfomaníaca Dama do Último Vagão também participam do cenário.
 
Da garimpagem pelo universo do imaginário caboclo e do mergulho em suas próprias memórias, emergem no livro 35 narrativas envolvendo personagens que, de alguma forma, estiveram ligados à obra que ligou lugar nenhum a nenhum lugar, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, no dizer de alguns críticos mais ferinos. De formação Cutuba os três, um deles não perdeu a oportunidade para, nas entrelinhas da obra, desenhar um Aluízio Pinheiro Ferreira herói do nacionalismo rondoniano. Sendo a própria saga histórica desse personagem uma epopeia surrealista, nada mais justo que deixar pra lá a preocupação com a verossimilhança e embarcar sem muita exigência crítica no batelão dos causos apresentados, deixando a percepção dos escritos de bubuia. No discurso do imaginário o homem é às vezes mais sincero que nas catilinárias do real.
 
Como se fosse um palco ambulante em meio à selva indomável e à justa sanha dos ultrajados karipunas, perambulando por sobre os dormentes onde cada peça representa um operário morto em sua construção, no trem de Yêdda, Viriato e Samuel Castiel a vida é descrita como uma irônica e trágica comédia encenada, no dizer dos autores, nestes confins da Amazônia. Nesse picadeiro a céu aberto, os protagonistas contracenam roteiros e performances mirabolantes e despudoradas ao sabor das emoções, da lascívia sexual, das ambições e maldições intrínsecas ao cumprimento do Tratado de Petrópolis, impositivo da construção da famosa ferrovia, berço da nossa civilização, através do qual o Brasil arrebanhou o território do Acre da República Boliviana.
 
A conclusão a que se chega, após a leitura dos textos produzidos pelos três acadêmicos, inevitavelmente é: oh! yes, nós temos banana, mas possuímos imaginação também. E o mérito desses três mosquiteiros da literatura do fantástico reside exatamente aí nessa construção cartesiana: imagino, logo existo! Portanto, a plenitude da experiência humana vai além das explicações racionais postas nos manuais oficialescos da história do homem nestas paragens do poente. Somos todos românticos sonhadores, metafísico de beira rio, mentirosos no bom sentido e bons contadores de causos e anedotas. E não haveria de ser diferente, se nossos antepassados tiveram por berço civilizatório uma tresloucada maria-fumaça, instalada a ferro e fogo, e construída ao sabor do delírio, dos interesses geopolíticos das nações e das ambições desmedidas do Dono do Brasil, como chegou a ser denominado Percival Farquar, no auge do seu imperialismo empresarial em terras dantes lusitanas.
 
No bojo do livro, o real e o imaginário confabulam confidências audíveis somente aos ouvidos da semiótica, que despreza o texto pelo texto, o contexto pelo contexto, e procura descortinar leituras muito mais apuradas para além do mundo das ideias de Platão, da logicidade orgânica de Aristóteles e da concatenação dos fatos pela historiografia clássica. Nesse sentido, a literatura só deve satisfação ao rio caudaloso de Heráclito de Éfeso. No Trem Vivo, o texto é só um pretexto para a necessária sondagem invasiva sobre o tamanho ou pequenez da espiritualidade karipuna! Na locomotiva desses escritores, a viagem da memória beradeira não vai apenas da Candelária ao Jaci! Revela, como faz o chá do mariri, o conjunto das subjetividades estonteantes e incensuráveis, a povoar o espírito dos atores que aceitaram pactuar suas vidas com a maior e quase anárquica epopeia do capitalismo moderno em solo amazônida

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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