A reprodução de seres humanos em laboratório aos poucos se impõe como o grande questionamento existencial pautado para o início deste milênio. Dentre as várias facetas a serem abordadas - algumas, aliás, já contempladas em matéria assinada pelo falecido Juiz Federal José Wilson Ferreira Sobrinho, publicada em periódico karipuna - uma merece especial atenção: o uso político-ideológico dessa técnica científica por grupos, segmentos ou classe social.
A carnificina realizada pelo nazismo, que sacrificou a vida de seis milhões de judeus em nome da superioridade da “pura raça Ariana”, subliminarmente movida por interesses econômicos, ainda repercute na consciência da humanidade. Corpos humanos foram utilizados em experiências inescrupulosas com o objetivo de provar a inferioridade racial dos descendentes de Israel e a conseqüente supremacia dos filhos do III Reich. “Aqueles que governam têm o direito de governar porque pertencem a uma raça superior” - disse Adolf Hitler. Diante da possibilidade real da clonagem, quem garante que um outro tresloucado não lançará mão dela para invocar o IV Reich?
Algumas calendas mais para trás, tivemos o fenômeno do racismo contra os negros, cuja experiência foi subsidiada não só pelo pelos interesses econômicos da nobreza e da burguesia em ascensão, e homologada pela Igreja Católica, Apostólica e Romana, como por notáveis sábios e ideólogos da chamada teoria superioridade racial.
Na vizinha Bolívia o choque entre grupos étnicos que se intitulam “superiores” é muito patente. Nesse país, a sociedade está divida em “Cambas”, “Colhas” e “Chapacos”. Os “Cambas”, descendentes do índio amazônico, dominam os Estados de Santa Cruz, Beni e Pando; os “Colhas”, o mais forte grupo étnico, descendem da famosa civilização incaica (daí decorre a principal motivação ideológica da pretensa superioridade, o orgulho de descender de um povo que dominou outros povos e construiu um grande império) e detém a hegemonia político-econômica em La Paz, Cochabamba, Sucre, Oruro e Potossi; já os “Chapacos”, elemento híbrido de branco, cambas e colhas, porém com preponderância do sangue Guarani, vivem em regiões áridas (Tarija) e tem menor expressão político-social.
Num restaurante “Camba”, em Guayará-Mirim, por exemplo, “Colha” não entra, e não passa nem pela calçada, porque sabe que não é bem-vindo; ou porque se julga superior aos “Cambas”, ou porque, naquela região, território “camba”, introjetou o complexo de inferioridade, incutido pela família, escola, religião e até mesmo pelo Estado. Esses grupos sociais, cada qual com seus argumentos ideológicos, se chocam, segregam quando possível, e perseguem seus objetivos político-econômico-sociais a partir de suas convicções étnicas, à mercê, na verdade, da dominação da burguesia branca, esta, sim, dona da maior parte da riqueza produzida no país. A discriminação da minoria branca em relação aos grupos indígenas, é mais acentuada, aliás, que a discriminação entre eles próprios. É de se imaginar, portanto, que a utilização da técnica da clonagem numa sociedade como a boliviana deva vir a causar sérios problemas no campo ético, étnico, político e ideológico. Presume-se com razoável dose de obviedade que cada um desses grupos elegerá seus biotipos perfeitos e os usarão como matrizes na reprodução de clones da “raça superior”. Não se pode esquecer, também, dos Argentinos - para quem os brasileiros não passam de “um bando de macacos” - que, com ares de superioridade, se julgam os “suíços” da América do Sul.Para temperar ainda mais o imbróglio, é de se lembrar, do racismo tupiniquim: o nosso é pior do que o norte-americano, que é explícito, porque o nosso é implícito, subjacente, maquiavélico, velhaco, manhoso, mutretoso e enrustido. Isso para nos reportarmos apenas à realidade americana. Além do mais, é notório que o nazismo e o racismo sobrevivem de forma latente em muitas sociedades européias, o que, sem dúvida alguma, vai complicar em muito o tabuleiro das discussões e da aplicabilidade da clonagem no século que se inicia.
Do ponto de vista gnosiológico, o advento dessa nova tecnologia é inevitável porque, como disse o nobre articulista Wilson Sobrinho, “não se pode desconhecer que o conhecimento é, na verdade, um vir-a-ser, isto é, faz-se a si mesmo continuamente”. É o chamado movimento paradoxal do conhecimento: quanto mais se sabe, mais aumenta a ignorância humana e mais precisa-se saber, porque um conhecimento lança luzes sobre o instrumental cognoscente do homem mas engendra também infinitas sombras sobre sua realidade existencial.
A clonagem, portanto, é o grande desafio existencial da sociedade contemporânea. No entanto - sabemos - é possível reproduzir a matéria mas não é possível clonar o espírito. Serve de consolo. Imagina, por exemplo, clonar o “espírito de porco”. Seria o fim da picada! - como diz o caboclo.
Fonte: Antônio Serpa do Amaral Filho
Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)