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Gente de Opinião

Serpa do Amaral

O que causa medo e vergonha no olhar de Eliana Brum?


 
Por Antônio Serpa do Amaral Filho

A repórter Eliana Brum deveria passar uma quarentena no xilindró, por ser persona de alta periculosidade e subversiva. Ela teve a ousadia de querer nos despir e lavar em público a roupa suja de nossa perdição histórica. Seu texto bombástico servirá de prova material do ilícito penal, caso alguém se arvore a levá-la às barras dos tribunais. Seu argumento jornalístico é um show de subversão do primeiro ao último parágrafo. Seu crime: exercitar um olhar excessivamente crítico, ácido e espinafrante. Em regra, faz-se jornalismo falando sério sobre os fatos do mundo. Só que essa seriedade tem limites: o da cumplicidade social convencionada para manter o status quo funcionando.

Eliana meteu os pés pelas mãos e atentou contra o paradigma combinado debaixo dos lençóis do poder, do inconsciente coletivo guaporé e do faz-de-conta que mantém o espetáculo do circo existencial. A dignidade dos karipunas já não estava lá, quando o texto de Brum procurou detonar o sagrado contexto, a pretexto de ser apenas um expediente jornalístico de praxe.

Nunca na história deste Estado tantos em tão pouco tempo se levantaram para atacar uma mesma pessoa, a anti-heroína Eliana Brum. Inadmissível que sejamos tão feios assim. Inauguramos um shopping, estamos edificando espigões a três por quatro, asfaltando a Vieira Caúla, temos uma frota de 135 mil veículos, seremos hospedeiros de 120 mil pessoas e estamos construindo duas hidrelétricas para mandar energia pro sul maravilha! Está certo que de vez em quando dá uma zebrinha. Ninguém é perfeito! A última, por exemplo, desculpem o senso-comum, seria hilárica se não fosse tão dramática: um super-delegado, acompanhado de outro xerife, perdeu ponto para dois aprendizes de ladrão de galinha, pagando inclusive com vida. É, mas talvez esse fato seja pontual e não guarde nenhuma relação com o contexto tenebroso pintado pela repórter... Voltando à nossa prosa, o fato é que a nação karipuna tremeu, como treme o malarento acometido pela mazela tropical; as tribos todas, sentindo-se ofendidas e desacatadas, mandaram seus melhores guerreiros para contra-atacar a repórter e apagar o incêndio por ela provocado. Da tribo petista veio o capitão-do-mato Tácito Pereira. Da literatura, o poeta Antônio Cândido. Das hostes do poder municipal, apresentou-se o minhoca da gema Emerson Castro. Representando o Mocambo, Olaria, Caiari, Boi-Bumbá e Catirina, atacou Zekatraca pela ponta esquerda. Pela ponta direita compareceram representantes da classe média e da tradicional família rondoniense. Vândalos e ostrogodos karipunas de setores politicamente engajados fustigaram a repórter pelos flancos. Até visigodos socialistas, comunistas e centro-direitistas brandiram espadas e facões na guerra contra a Boca do Inferno da revista Época. De repente, não mais que de repente, quem não tinha orgulho tratou de encontrar um perdido em meio ao esgoto que corre céu aberto nas ruas da cidade; quem não tinha amor pela urbe fez questão de exibi-lo como um troféu sucateado, há muito jogado num canto da memória desbotada. Empresários e políticos voltaram a alardear que investir em Rondônia é um negócio da china. Antigos moradores redescobriram a cidade e verificaram que realmente tem muito buraco nas ruas, mas olhando bem tem buraco até na lua! A administração petista calada leu, calada ficou. Emerson Castro esperneou, mas o fez em nome próprio, e com tamanho despreparo, que prefiro não comentar. Com uma boa dose de desconto à autocrítica, cada macaco procurou defender o seu galho, fingindo momentaneamente não olhar pro rabo do outro, até que a caravana passasse e os cães parassem de ladrar. Ou a falácia embebedou e cegou a todos, ou nós trotamos feito bosta nágua, ou essa repórter é mesmo o cão chupando manga!

Por via das dúvidas, fui me aconselhar com as Três Marias e elas me refrescaram a memória: a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré foi construída para a Bolívia, e não pra gente, a gente não estava lá, quando o Barão do Rio Branco ganhou o Acre no tapetão. A República de Evo Morales recebeu dois milhões de libras esterlinas, e pra nós ficaram as máquinas retorcidas e uma dosagem de lirismo e saudosismo. A Borracha que produzimos na década de 40 era para os norte-americanos, e não pra nós. Os gringos ganharam a guerra e se firmaram como potência, e pra nós ficou um contingente de recrutas analfabetos, pobres e desempregados – um batalhão de deserdados produzido pelo Acordo de Washington. A criação do Estado de Rondônia foi concebida pelo bruxo Golbery do Couto e Silva para desafogar os problemas sociais do sul-sudeste, e não para nós. Pra nós ficaram os problemas ambientais e sociais deixados pela garimpagem irracional. No ciclo da mineração, as multinacionais levaram toda a cassiterita, e nós ficamos tomando cachaça no Meio Kilo Bar. E agora estão construindo duas usinas hidrelétricas cuja massa energética também não é pra nós, é para fomentar as ricas economias do sul e sudeste; pra nós ficarão os problemas sociais, ambientais, políticos e econômicos, e o caos urbano descrito pela jornalista. Esse olhar diferenciado parece ter ameaçado a todos os atores da trama existencial guaporé. Se os rondonienses não são tão míopes assim, o que realmente causa medo e vergonha no olhar de Eliana Brum?? Ame-a ou queixe-se, se não a História a absolverá...

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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