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Serpa do Amaral

Opinião: Memórias vivas de um porto-velhense enganado



Naquela manhã, um porto-velhense acordou metamorfoseado em estranho ser: um cidadão enganado. Em seguida, ele sentiu uma náusea a tomar conta da consciência. Em vez de revolta, a certeza da falácia de tudo que lhe disseram: “Porto Velho se tornará cidade com parâmetros sociais de primeiro mundo. É o momento histórico do crescimento moral e material. Nada será como antes: o progresso chegou para ficar. Preparem-se para glória!”. Percebeu, na verdade, que lhe deram o golpe “Boa-noite Cinderela” e lhe roubaram tudo que tinha; o voto e a esperança por uma Capital melhor, inclusive.Opinião: Memórias vivas de um porto-velhense enganado - Gente de Opinião

Não tardou em ir ao trabalho. Quando saiu de casa, a visão dantesca da realidade. Na sua rua, a lama tomava conta de tudo. O local aparentava um vistoso cenário de rali: barro, pedra, desvios, estacas e água parada, num amálgama de abandono e desprezo pelo cidadão. Naquele momento, lembrou-se do vizinho que há meses tentava concluir uma canoa. Dias antes rira do projeto. Agora, queria até ajudar na feitura da embarcação para poder usá-la. Por sua vez, a alagação não o moveu da obrigação de ir trabalhar: amarrou sacos plásticos nas pernas e seguiu para o ofício.

Chegando à parada de ônibus, torceu para que não chovesse. Para sua sorte, o inverno Amazônico já acabara. Contudo, a tábua ao léu não o protegia do calor intenso. O que pôde fazer apenas foi tirar os sacos plásticos das pernas e suportar o constrangimento. Aguardou o ônibus por mais meia hora. Pensou no espaço sardinhesco que iria adentrar. Apesar da rotina, não acreditava que aquilo era condição para um existente. O primeiro coletivo passou e ele não conseguiu entrar. Havia pessoas demais, até penduradas. Esperou o próximo coletivo. Este logo veio. O nosso Karipuna entrou e contemplou as condições precárias do ônibus: bancos quebrados, paredes sujas, ausência de instrumentos de segurança e o calor costumeiro. Apesar disso, não tinha o que fazer. Tratava-se do único transporte que dispunha.

O ônibus seguiu lentamente pelo trânsito caótico de Porto Velho. Naquele espaço incômodo, a lei que dizia que dois corpos não podiam ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo acolheu uma exceção. Queria, depois da reflexão, se alojar em algum assento. Na oportunidade que teve, não o fez. Por educação, coisa rara hoje em dia, deixou uma idosa sentar no lugar. Assim, restou-lhe encostar ao vidro da janela e buscar uma brisa que pudesse mitigar o calor insuportável do coletivo. Lá fora, viu uma cidade abandonada. Quintais tomados por matagais intermináveis, ruas sem sinalização e sem calçadas. Uma máxima lhe veio à memória: “fomos maus espectadores da vida, se não vimos também a mão que delicadamente – mata”.

Logo depois, o ônibus passou por gigantescos paralelepípedos abandonados. Perguntou ao colega ao lado quando a obra ia ser concluída. Ouviu somente palavrões irrepetíveis. Não retomou a conversa. Olhou para um dos cubos e viu lá uma banca de DVD’s piratas. Noutro cubo, um homem atrás do bigode preparava uma barraca de espetinhos e mentiras... Ele conhecia aquele vendedor. Não era homem sério ou simples, já que sempre vendeu ilusões.

Pensou que todo aquele material de concreto poderia ter sido utilizado para construir dezenas de casas a serem distribuídas para quem precisasse (homeless). De repente, um dos usuários do coletivo criticou a obra: “alguém que faz uma coisa dessas com dinheiro público não tem o mínimo de vergonha na cara!”. Todos concordaram e ele compreendia a dimensão daquele mal-estar que o acometera de manhã: “fui enganado”.

Depois do trevo, o ônibus adentrou terreno sinuoso. O balançar foi tão grande que o porto-velhense sentiu náuseas e puxou a corda de alerta: queria descer. O ônibus parou e, após um empurra-empurra, ele conseguiu sair. Olhou para avenida e não entendeu como permitiam tanta buraqueira em uma via. Não acreditou que o pós-moderno da engenharia de trânsito era abolir a rua plana e sem buracos. Não conseguiu vomitar. Seguiu o seu destino.

Na primeira tentativa que fez para cruzar a rua, na faixa de pedestre, quase teve um encontro com o Barqueiro. Tentou de novo e foi xingado por um motorista que não respeitou a faixa. Pensou em chamar a Polícia e pôs uma moeda na mão como garantia: o Barqueiro era exigente. Ninguém respeitava o pedestre... Quando menos esperava, dois carros pararam antes da faixa. Viu que as placas eram de outros estados. Acreditou que era pura coincidência. Sabia que havia pessoas educadas também na sua cidade. Continuou seu caminho. Estava atrasado e o seu patrão já o aguardava.

Caminhou mais um pouco. Perto do trabalho, viu aquele esgoto a céu aberto. O ar fétido que irrompia da vala o fez tapar com força o nariz. Não poderia respirar aquilo. Não entendeu como poderiam deixar o esgoto daquele jeito. Lembrou que por toda a cidade havia aquele tipo de pseudocanalização dos resíduos. A própria rodoviária da cidade, ponto de chegada de muitos forâneos, após décadas de decisões inadequadas, também possuía o seu canal de podridão. Lembrou ainda que algumas cidades, por mais diminutas que fossem, tinham uma rodoviária mais vistosa, mais higienizada. Logo sentiu a verdade novamente lhe incomodar: “fui enganado”.

Chegando ao trabalho, recebeu a advertência do chefe que não poupou palavras. O porto-velhense nada disse. Entrou, taciturno, na sua sala para pegar os documentos para iniciar a labuta, quando notou que ao fundo a televisão mostrava uma entrevista com a Municipalidade que anunciava com ímpar pompa as centenas de benfeitorias que foram feitas em Porto Velho no último lustro. Olhou para a borda da sua calça, ainda manchada pela lama, e não acreditou que estava vivendo na mesma cidade que a TV mostrava. Agora, tinha certeza: o voto depositado se transformou na autorização para enganá-lo descaradamente.

Na volta para casa, conseguiu, apesar do aperto, um local para sentar no ônibus. Lá escreveu suas memórias vivas daquele dia, encaminhou-as para a Ação Popular: Respeitem Porto!! e pediu publicação. Alguns, achando bárbara a enganação que ele sofreu, fizeram forte a indignação e a repulsa contra os enganadores. Outros, escravizados pela lógica de só enxergarem verdades que lhes apeteciam, fizeram coro com os enganadores: “os onze contos de réis são mais importantes!”.

Ação Popular: Respeitem Porto Velho!!

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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