Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Serpa do Amaral

Serpa do Amaral propõe Ferrovia do Diabo, a terceira via


Meu caro Editor, a construção das Hidrelétricas é o grande tema do momento. Vimos participar também desse debate. De repente, não mais que de repente, como diria o poeta Vinícius de Morais, o Brasil descobriu o rincão desbravado por Rondon: a Rondônia do mitológico  El Dorado da década de 70. Se filho de peixe é peixinho, rebento de El Dorado é Panacéia, filha de Esculápio, deus da Medicina, benzedeira capaz de curar todos os males da humanidade.
A construção das Hidrelétricas do Madeira chama atenção dos setores produtivos brasileiros, do capital internacional, e se coloca diante do PAC do presidente Lula como uma pedra no meio do caminho. Esse empreendimento é rico em possibilidades prós e contras, fundamentalmente, por causa do espantoso desconhecimento sobre a região Norte. Estão querendo brincar de pira com macaco gogó-de-sola. Aproveito para colocar outro problema que é mais importante para Rondônia do que as próprias hidrelétricas, porque tem a ver com a economia local. É a hidrovia que querem construir para atalhar o Pacífico descendo por rios da Bolívia até ao Peru. O projeto transforma as cachoeiras em lago, alternativa que duplica a solução implementada com a ferrovia Madeira-Mamoré há um século, projeto boliviano de saída para o Atlântico contemplado pelo Tratado de Petrópolis, hoje ineficaz. Essa hidrovia diminuirá o caminho para a China em mais de 5.000 km, reduzindo custos de produção. Isto vai estimular o avanço da soja sobre a floresta amazônica, promovendo gigantescos desmatamentos, queimadas e mais aquecimento global. Solução mais rápida e econômica não seria restabelecer a ferrovia Madeira-Mamoré, com menor custo de reconstrução e menos dano ambiental, já que o caminho ainda está aberto, tratando apenas de recuperá-lo sob novo paradigma tecnológico, com maior capacidade de transporte e rapidez? Os outros países vizinhos fariam a pavimentação da saída para o Pacífico e assim estaria solucionado o problema do escoamento das riquezas dirigidas ao abastecimento dos mercados internacionais. Para tanto, o governo federal deve desaquecer sua ânsia em obter a toque de caixa o licenciamento ambiental e fomentar junto ao seu corpo técnico pesquisas capazes de produzir subsídios viabilizadores dessa via alternativa. A propósito do estudo de impacto ambiental, fala-se que o problema dos bagres está na Dourada (na linguagem da mídia do sudeste). Ignorância ou má-fé: são dezenas de bagres gigantes (pirara, jaú, caparari, piraíba, surubim, pintado, filhote), largamente consumidos e comercializados. É precário o estudo-levantamento de Furnas-Hodebrecth que somente estudou dois dos bagres, dentre quase 500 espécies de peixes que freqüentam a cachoeira de Santo Antônio do Madeira. A piracema (fenômeno da desova cíclica dos peixes nas cabeceiras do rio que desce madeira) tem lugar ímpar na macro-cadeia ecológica do universo amazônida. Destruí-la unilateralmente pode ser o começo do maior desastre ambiental brasileiro, em efeito dominó. Institutos de pesquisa estimam que 70 mil famílias serão lançadas à miserabilidade no Estado do Amazonas por conta do sumiço desses bagres por lá. O que é bom para o sudeste não é bom para a Amazônia: poluíram o Tietê e agora o governo anuncia que sua revitalização custará 2 bilhões de reais.
A reativação da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré pode ser a terceira via. Falta transparência e cientificismo na venda falaciosa da campanha em prol da construção das usinas. Elas, como se fossem candidatos em plena campanha eleitoral, estão sendo vendidas para o público com requintes de mídia articulada, argumentação tendenciosa, imagem retocada para parecer impecável e uma boa dose de emocionalismo envolvendo os diversos segmentos sociais. O porre da massificação de convicções pró-usinas é de tal monta que, na comunidade rondoniense, as pessoas se sentem constrangidas em se posicionar e argumentar contra o projeto. À maioria parece tão óbvio que as usinas são um negócio da China que chegam a apontá-las como a grande salvação da nação Guaporé. Não fossem instituições sérias como o Ministério Público Federal, Ibama e Justiça Federal, que têm atuado rigidamente na fiscalização das dimensões técnicas e legais do empreendimento, a obra já teria sido iniciada há muito tempo. Darcy Ribeiro, ao fazer uma conferência na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, surpreendeu quando apresentou como tema o óbvio. E à medida que ia discorrendo sobre o óbvio, foi descortinando os engodos e falácias entranhadas nas concepções que tomam ares de verdade, mas, quando despidas de suas contradições, mostram-se perfeitos embustes construídos para ludibriar os incautos, basbaques e estreitos. Mas nem todos estão anestesiados. Há vida inteligente às margens do Madeira. Os Amigos da Madeira-Mamoré poderiam ingressar na arena do debate e, com muito mais propriedade, poderiam dizer se a Ferrovia do Diabo pode, ou não, vir a ser a Terceira Via na resolução desse imbróglio.

Antonio Serpa do Amaral Filho   - (escritor rondoniense)

Serpa do Amaral propõe Ferrovia do Diabo, a terceira via - Gente de Opinião


* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoDomingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Diálogos insanos da pandemia

Diálogos insanos da pandemia

No infortúnio da solidão atroz, o jeito é quedar-se nu com a mão no bolso, olhando para as impassíveis paredes que miram, espiam a gente até de rabo

Um dia da caça, outro dos “povos novos”, de Darcy Ribeiro

Um dia da caça, outro dos “povos novos”, de Darcy Ribeiro

Num primeiro voo de radiofusão para além das plagas amazônidas, a Música Popular de Rondônia começou a ser mostrada na Rádio BBmusic, da cidade Búzi

As lágrimas internacionais que choraram a morte do poeta

As lágrimas internacionais que choraram a morte do poeta

A democracia voltou a ser ameaçada no país cujo nome é uma homenagem a Símon Bolívar, o Libertador das Américas. Com essa última quartelada, já são

 Os homens do poder sempre passarão; o bom humor, passarim!

Os homens do poder sempre passarão; o bom humor, passarim!

Apesar do vazio cultural, da perda irreparável para o humanismo e para a criatividade brasileira e do profundo incômodo emocional provocado pela par

Gente de Opinião Domingo, 24 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)