Domingo, 3 de novembro de 2013 - 19h14
A Constituição Federal de 1988 refletiu integralmente a chamada Tradição Democrática, vinda diretamente das Revoluções Americana e Francesa, bem como temos os traços de Montesquieu, Rousseau, Benjamin Constant.
Em passagem clara de O Contrato Social, o filósofo genebrino nos leva ao socialismo participativo como inerente à democracia e aí retrata a pressão da vontade geral para que cada indivíduo se sinta forçado à liberdade:
A fim de que o pacto social não represente, pois, um formulário vão, compreende ele tacitamente este compromisso, o único que poderá dar força aos outros: aquele que recusar obedecer à vontade geral a tanto será constrangido por todo um corpo, o que não significa senão que o forçarão a ser livre, pois é essa a condição que, entregando cada cidadão à pátria, o garante contra qualquer dependência pessoal. Essa condição constitui o artifício e o jogo de toda a máquina política, e é a única a legitimar os compromissos civis, os quais, sem isso, se tornariam absurdos, tirânicos e sujeitos aos maiores abusos (Rousseau, 1987, p. 36).
No nosso caso, o constituinte de 1986 poderia ter ido além, sem dúvida, a exemplo da implementação da vontade geral como princípio derivado da consciência política inerente ao sujeito de direito; em que o direito é um medium de interatividade[1].
Em todo caso, o legislador constituinte avançou, inclusive, ao referenciar a democracia no Princípio da Justiça Social (artigo 170) e depois, no artigo 193, ao prescrever que a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.
Mesmo que a Justiça Social seja uma corruptela (mais ideológica do que conceitual) dos pressupostos socialistas (estes referendados na Constituição Portuguesa, de 1974[2]), daí por diante, mudamos nosso direito para ser democrático. Também poderíamos ter aprimorado, aprofundado os quesitos da democracia inclusiva, participativa[3]; porém, em outro exemplo o povo criou sua própria Lei da Ficha Limpa (e que se espraiou para o conjunto dos servidores públicos).
O mais importante de tudo isso, entretanto, são os 25 anos de democracia liberal clássica, em que o constituinte configurou de maneira específica as salvaguardas ao Estado Democrático[4]. Com este fim, na Constituição da República, a democracia e os institutos derivados foram grafadas expressivas 17 vezes.
Já o preâmbulo da Constituição de 1988 traz o Princípio Democrático, tão celebrado por Canotilho (s/d). Aliás, nossa primeira qualificação é esta, ao se afirmar que: “Nós, representantes do povo brasileiro, estamos reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático”.
De modo igualmente incisivo, em seguida, no artigo 1º, constituiu-se o Estado Democrático de Direito, agora com fundamento na cidadania (inciso II) e no pluralismo político (inciso V). Em seu parágrafo único, vê-se a descrição da democracia direta e representativa, pois: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Com garantia institucional da democracia, no artigo 5º, XLIV, o constituinte definiu como crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
No artigo 17 temos a garantia de que é livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardadas a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana. Há uma espécie de democracia profunda, no sentido de que as representações político-partidárias não podem violar o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
No artigo 23, observa-se a confirmação da competência comum, compartilhada entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, em para assim zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público (inciso I).
O artigo 34 disciplina o instituto da intervenção, em que a União terá poderes limitados, sobretudo para disciplinar e (inciso VII) assegurar a observância dos princípios constitucionais que legitimam a República, o sistema representativo e o regime democrático – bem como os direitos da pessoa humana (alíneas a e b).
O artigo 59, dispondo sobre o processo legislativo, foi regulamentado pelo artigo 60 e sob a vedação para que não sofressem alteração – mediante emenda constitucional (§ 4º) – os seguintes princípios:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
O artigo 90 instituiu o Conselho da República, com base na estabilidade das instituições democráticas (inciso II).
No artigo 91, o Conselho de Defesa Nacional é definido como órgão de consulta do Presidente da República nos assuntos relacionados à soberania nacional e à defesa do Estado democrático. Sendo que no inciso IV do artigo 91 são definidas suas funções, dentre as quais garantir a independência nacional (soberania externa) e a defesa do Estado democrático (soberania popular).
Como se vê no artigo 127, o Ministério Público é articulado como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-se da defesa da ordem jurídica e do regime democrático.
O TÍTULO V - Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas (CAPÍTULO I) prevê e regulamenta os institutos do ESTADO DE DEFESA (artigo 136) e do ESTADO DE SÍTIO (artigo 137), como recursos excepcionais em proveito da integridade soberana da ordem pública ou a paz social e diante da grave comoção ou da iminência de guerra.
A seguridade social (artigo 194) compreende um conjunto integrado e destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Com previsão de que o Poder Público obedecerá (inciso VII)ao caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.
Na disposição do artigo 206, lê-se que o ensino será ministrado com base no princípio da gestão democrática do ensino público.
O direito à cultura (artigo 215, inciso IV) observará a democratização do acesso aos bens de cultura (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005).
O artigo 216-A instituiu o Sistema Nacional de Cultura, com base no processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, de configuração democrática e permanente. Dentre seus princípios (parágrafo um, inciso X) reafirma-se a democratização dos processos decisórios com participação e controle social; Incluído pela Emenda Constitucional nº 71, de 2012.
No artigo 2º do Ato das Disposições transitórias assegurou-se o plebiscito, que seria realizadono dia 7 de setembro de 1993, sobre a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que deveriam vigorar no País. (Vide emenda Constitucional nº 2, de 1992).
Muito tem que ser feito, especialmente para que a definição jurídica de Estado Democrático seja uma realidade no Brasil. Todavia, é claro que, juridicamente, a democracia clássica está garantida.
Em suma, para estabelecer a vontade geral, desde logo, assegurou-se a inviolabilidade dos parlamentares, em razão de suas opiniões ou votos. Há ainda o pluralismo político, a rotatividade do poder assegurada na limitação imposta à reeleição, a previsão de que todo candidato precisa estar filiado a um determinado partido político. Além de que se faz uso da iniciativa popular, do plebiscito e do referendo.
Vale lembrar que a separação de poderes está assegurada como cláusula pétrea, contra qualquer tipo de Golpe de Estado ou em desfavor das instituições democráticas, assim como se exigiu a irrevogabilidade do voto direto, secreto, universal e periódico – quer dizer, voto livre – pois que aí se sustenta o princípio da soberania popular (art. 14), incluindo-se a possibilidade do voto facultativo para analfabetos, maiores de 16 e antes dos 18 anos ou, então, quando acima dos 70 anos.
Nessa esteira, a isonomia, é óbvio, não faria distinção entre homens e mulheres quanto aos direitos políticos, a não ser a previsibilidade que de haveria medidas protetivas, na modalidade de ações afirmativas para as mulheres. Apenas o analfabeto não poderia ser candidato, mas teria o direito ao voto livre. Hoje, até os presos em regime semiaberto têm a prerrogativa do voto, como medida ressocializadora.
Por fim, muitas alterações são exigidas como Reforma Política, uma delas trazendo para o debate inclusive o voto facultativo. Fala-se em voto distrital e em lista mista, recuperando-se teses do regime de governo parlamentarista – ou as cláusulas de barreira para limitar a fragmentação partidária. Contudo, não podemos questionar que foi dado o primeiro passo em direção à democracia, como soberania popular radical, ao se prever a “edição de leis conforme regras prescritas, das quais o povo aprova o caráter vinculante” (Fleiner-Gerster, 2006, p. 242 – grifos nossos).
Bibliografia
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de janeiro : Paz e Terra, 1986.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4ª Edição. Lisboa-Portugal : Almedina, s/d.
FLEINER-GERSTER, Thomas. Teoria geral do Estado. São Paulo : Martins Fontes, 2006.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo : Ed. 34, 2003.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado: metamorfoses do Estado Moderno. São Paulo : Scortecci, 2013.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social: ensaios sobre a origem das línguas. 4ª ed. Col. Os Pensadores. São Paulo : Nova Cultural, 1987.
[1]“...no Estado a vontade geral se contrai em ‘um Um’, no ponto de uma única instância de poder, que por sua vez se refere a seus portadores, às pessoas de direito portanto, da mesma maneira que se refere às formas de sua própria produção espiritual” (Honneth, 2003, p. 109). A intersubjetividade é jurídica, política, cultural, psíquica.
[2]Portugal é umEstado de direito democrático: “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa” (Artigo 2.º).
[3]“O modelo ideal da sociedade democrática era aquele de uma sociedade centrípeta. A realidade que temos diante dos olhos é a de uma sociedade centrífuga, que não tem apenas um centro de poder (a vontade geral de Rousseau) mas muitos, merecendo por isto o nome, sobre o qual concordam os estudiosos da política, de sociedade policêntrica ou poliárquica (ou ainda, com uma expressão mais forte mas não de tudo incorreta, policrática)” (Bobbio, 1986, p. 23).
[4]O Estado Democrático conheceu sua reinvenção jurídica com a Constituição de Bonn (1949), definindo-se a impossibilidade de a democracia ser aniquilada em razão, em defesa da própria democracia – o que já se vira acontecer, historicamente, com a Constituição de Weimar de 1919 (Martinez, 2013).
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Vinício Carrilho Martinez (Dr.) Cientista Social e professor da UFSCar Márlon Pessanha Doutor em Ensino de CiênciasDocente da Universidade Federal de