Sexta-feira, 11 de outubro de 2013 - 12h06
Vinício Carrilho Martinez[2]
Inicialmente, gostaria de agradecer o convite e a honraria de participar de evento tão significativo promovido pela Assembleia Legislativa do Estado de Rondônia, a Casa de Leis ou também conhecida como Casa do Povo, por reunir os representantes do povo do Estado de Rondônia.
Neste seminário “O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: 25 ANOS APÓS A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988” temos a incumbência de pensar – democraticamente – o papel da representação político-partidária durante esses 25 anos de CRFB/88. Para tanto, saúdo a presença do insigne
Prof. Dr. Valeriano Mendes Costa- UNICAMP |
Tema: A relação entre os poderes Executivo e Legislativo no Brasil |
Minha contribuição está neste breve texto em que me permito uma reflexão generalista acerca de um dos nossos maiores problemas, que é o Hiperpresidencialismo
O Hiperpresidencialismo tem como marca distintiva o excesso de poderes concedidos ao Poder Executivo, sejam concessões que se articulam em manobras jurídicas – mitigando direitos de cidadania – sejam articulações político-partidárias que anulam ou subjugam o Poder Legislativo. Não precisamos chegar ao estágio em que se encontram Rússia e Venezuela para sabermos o que não queremos como estrutura política.
O governo por medidas provisórias e a concessão arbitrária de recursos que atendem às emendas parlamentares – como a recusa do orçamento impositivo (em que os recursos teriam destino fixado por lei) –são exemplos das manobras que enrijecem a relação dos poderes e, assim, subvertem a necessária divisão dos poderes.
A Constituição Federal de 1988, em resposta ao golpe militar de 1964 e seus possíveis efeitos – ou ranço autoritário, como se dizia –,foi marcada por sua época, como salvaguarda de que o Poder Executivo não violaria prerrogativas essenciais da jovem democracia brasileira.
Trata-se sim de uma justificativa ou defesa de preceitos constitucionais e democráticos.Tais prerrogativas cumpriram seu papel na história, defenderam a democracia contra os achaques do centralismo absolutamente exacerbado. Por exemplo, algumas dessas regras democráticas destacam que:
1. O parlamentar não pode ser detido dentro deste recinto.
2. Há garantia do voto secreto (mesmo em casos de clamor popular) para que não se interponham retaliações do Poder Central.
3. A responsabilidade pela cassação dos mandatos é de competência exclusiva da Câmara Federal.
Tudo isso é perfeitamente democrático. No caso brasileiro, este conjunto de direitos democráticos foi elaborado, volto a dizer,para refrear os avanços autoritários de um poder absolutista. São direitos, diria mais, que suplantam a figura de cada parlamentar, são direitos da própria democracia. Essas salvaguardas e muitas outras foram criadas para fortalecer a ordem jurídica democrática.
Mas é preciso ter muito claro que,o país importou mal o receituário do presidencialismo estadunidense, porque esquecemos de oferecer condições institucionais e de efetivar os mecanismos que deveriam atuar como freios e contrapesos ao excesso do poder.
Hoje, certamente, esses recursos devem ser reavaliados. Para tanto a função regulatória do Poder Executivo deve ser retida na consciência política (e como reserva jurídica) a fim de que os arroubos do Hiperpresidencialismo sejam contidos. É preciso, em nome da liberdade, da verdade republicana, que a divisão dos poderes seja assegurada e que todas as formas de poder discricionário sejam a extensão da lei e não o livre arbítrio de quem ocupa assento no poder central.
No Brasil, desde a origem das capitanias hereditárias, o público é tomado pelo privado (Damatta, 1985). Mas, além disso, para ser donatário do poder, é preciso obediência e adulação ao poder de mando. Portanto, quem detém o destino do poder, suas benesses e/ou punições, define a extensão da relação amigo/inimigo. Aqui, a lealdade gera, inevitavelmente, a ignorância política.
O povo se resigna ora como dominado (mas, não-bobo), seguindo Sérgio Buarque de Holanda, na configuração do Homo cordialis (1995), ora como bilontra (Carvalho, 1987). Há ainda um certo “colonialismo cultural” que nos inclina ao conformismo da “Civilização de Homem Sentado” - vale dizer, sedentário -, de que fala Gilberto Freyre (1975). Ou, como veríamos hoje, na era do cidadão do sofá.
No caso brasileiro, para agravar a situação, a educação para a tolerância ainda esbarra no espólio do tal homem cordial — definido como o sujeito que procura se fazer e se passar sempre escondido na capa do clientelismo, oportunismo, nepotismo. Porém, também entendido como manto protetor, seja individual seja institucional, não é exclusividade brasileira, pois retrata esse grude aos edifícios burocráticos.
De todo modo, o povo não perde o bom humor e faz piada com o fiasco e seu cerimonial, ao que também se chamou de “burrice solene”: quando o sujeito declama tolices, conhecimento de botequim, como se fosse um discurso de prêmio Nobel.Para esses momentos, cabe o desprezo popular e não o desinteresse. Aliás, uma postura que mantém desde a proclamação da República. Os “espertos” chamavam o povo de tolo, mas a ironia popular (do “bilontra”) logo estabeleceu quem eram os bestializados.
Sabia-se que o formal não era sério. Os caminhos de participação eram uma farsa republicana. Por isso, dar credibilidade ao formal, à mentira trazida pela formalidade, não fazia sentido. Cidade, República, cidadania e direito estavam e ainda estão cindidos, separados pela ironia do povo e pelo cinismo do Estado. É certo que algumas relações se modificaram de lá para cá, a República é mais republicana, mesmo sendo privatizada pela corrupção. Pode-se dizer que a República está mais séria do que há alguns anos, ainda que longe da verdade republicana, como diziam os clássicos. O próprio julgamento do mensalão pela Corte Suprema, instituindo o “crime sistêmico” como atentado ao Estado, é exemplo extremamente positivo de que as coisas públicas podem/devem ter realmente uma vida pública.
Na descrição do Estado Príncipe de Raymundo Faoro, temos as vestes de nosso Hiperpresidencialismo:
O Estado torna-se uma empresa do príncipe, que intervém em tudo, empresário audacioso, exposto a muitos riscos por amor à riqueza e à glória: empresa de paz e empresa de guerra. Estão lançadas as bases do capitalismo de Estado, politicamente condicionado, que florescia ideologicamente no mercantilismo, doutrina, em Portugal, só reconhecida por empréstimo, sufocada a burguesia, na sua armadura mental, pela supremacia da coroa. A camada dirigente, com o rei no primeiro plano, o futuro régio mercador da pimenta, deverá ao comércio seu papel de comando, sua supremacia, sua grandeza. A estrutura patrimonial levará, porém, à estabilização da economia, embora com maior flexibilidade do que o feudalismo. Ela permitirá a expansão do capitalismo comercial, fará do Estado uma gigantesca empresa de tráfico, mas impedirá o capitalismo industrial [...] Guerra, quadro administrativo, comércio, a supremacia do príncipe – quatro elementos da moldura do mundo social e político de Portugal (1984, p. 21-2 – grifos nossos).
Este modelo deu origem ao Estado brasileiro, na base da guerra, quadro administrativo, comércio e supremacia do príncipe. Vê-se, assim, que ainda encontrarmos resquícios (vícios vividos, vitrificados – como se queira) nos dias atuais dessa estrutura social, política e econômica advinda do Estado Patrimonial. É fácil encontrar em muitas lideranças políticas, oligarquias políticas, a perspectiva de que o Estado é parte de seu patrimônio e que sua função é servir-lhes. Como nos diz Faoro, o Estado representa a extensão da casa do soberano: de sua vontade imperiosa e colonizadora.
Por isso, nesta Casa do Povo, devemos estabelecer trincheiras contra o excesso do presidencialismo, lutando diariamente em defesa da auto-afirmação e da autonomia do Estado Democrático de Direito (o Estado servidor da maioria) e contra sua forma negada, que é o Estado que se torna patrimônio de alguns (o Estado servo). É certamente um modelo de Estado Patronal.
Desde sempre, o donatário, como colonizador, é o destinatário do poder enquanto premiação ou sansão premial; já o povo, o colono – colonizado – o índio, o negro, o pobre, o sem-terra, o trabalhador, o homem médio, todos são destinatários da coerção. De lá para cá, muitas estruturas políticas foram removidas e a própria República teve momentos auspiciosos, mas o Hiperpresidencialismo permanece como ditadura constitucional disfarçada.
A liberdade de expressão é ainda um resguardo para que o Executivo não se arvore como os antigos donos do poder. Mas é pouco, sobretudo, quando pensamos na educação pública e na baixa qualidade pedagógica que a política produz nacionalmente. A pior forma de dominação, aquela baseada na ignorância, no fanatismo, na exclusão simbólica e real, infelizmente, é forte rival com o Estado de Direito.
O orçamento impositivo, resguardando recursos para a educação pública (como educação política por natureza e definição), seria um instrumento de descentralização dos meios decisórios. E qual Estado de Direito seria razoável para realizarmos a Justiça no Brasil?
O melhor remédio jurídico-político, para combater o excesso de poder, está na formulação de um direito democrático. Isto sabemos desde a Revolução dos Cravos, de 1974, em Portugal – experiência, aliás, que serviu de referência para nossa Constituição Federal de 1988.
Portanto, falta-nos valorizar o Direito produzido nas ruas, nas casas, nos espaços públicos, comuns e populares, nas associações de bairro, nas escolas, nos locais de trabalho, nas comunidades, nas fábricas e nas empresas, mais ainda no campo e junto aos povos da floresta. Um Direito produzido nas ruas para substituir aquele que, diziam, fora um Direito achado na rua[3]: o problema é que, para ser achado, o Direito deve ter sido jogado ou então foi perdido por alguém.
Também seria uma forma de compreender o Direito que fosse justo aos idosos e deficientes, aos negros e às mulheres, aos pobres e sobretudo aos sem-direitos. Seria uma maneira de agir em que o Direito trouxesse esperança aos mais jovens – esse é o Direito como Utopia[4]e não apenas como ficção (Hart, 2012). Um modelo de Estado e de República em que houvesse maior comunicação, interação entre os mecanismos concretos de ação pública, entre o Direito e as necessidades sociais. Trata-se de um Direito que não sirva apenas aos ricos.
Nossa história, se observada pelo olhar dos de baixo, é marcada pela luta do protocidadão (aquele que não é, mas que quer ser cidadão) com ou contra o pseudocidadão (aquele que não é, mas que se considera como tal).Para o pseudocidadão, a prática do Direito, normalmente mesclada com chicanas de todo tipo, acaba por negar a teoria social, e ainda que nos lembremos de que essa teoria está longe do que ocorre na vida concreta dessas pessoas (das nossas vidas).
Como resultado, não conseguimos alterar a prática histórica do favoritismo, patronato e nem somos capazes de produzir um discurso jurídico crítico e transformador. Então, da prática à teoria ou da teoria à prática, por duas razões de motivos, o Direito continua distante da realidade. Não é à toa que se diz solenemente na vida comum do homem médio e na academia: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”.
Todos os indícios históricos de nossa formação indicam que o Estado e o Direito servem às elites que controlam os próprios meios jurídicos e políticos. Talvez em função de haver essa clareza quanto ao processo de dominação histórica baseada nos instrumentos e nos recursos políticos, alguns juristas acabem mostrando-se mais sensíveis e realistas – pois ajudam a retirar o véu que confunde nossa consciência.
De qualquer modo, devemos lutar para que o Direito faça bem ao povo, à sociedade, aos mais pobres e sem-poder. Esta é a missão histórica dessa Casa de leis.
Bibliografia
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo : Companhia das Letras, 1987.
DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. São Paulo : Brasiliense, 1985.
FAORO, Raymundo. O Estado patrimonial e o Estado feudal. IN: Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 6ª ed. Vol. 01. Porto Alegre : Globo, 1984, p. 15-29.
FILHO, Roberto Lyra. O que é direito. 17ª edição, 7ª reimpressão. São Paulo : Brasiliense, 2002.
FREYRE, Gilberto. Seleta. Rio de Janeiro : José Olympio, 1975.
HART, H. I. A. O conceito de direito. São Paulo : Martins Fontes, 2012.
HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. 2ª ed. São Paulo : Companhia das Letras, 1995.
[1] Texto apresentado no Seminário “O SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO: 25 ANOS APÓS A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988”, na Assembleia Legislativa do Estado de Rondônia.
[2]Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia. Doutor pela USP e pela UNESP.
[3] A expressão Direito achado na rua: concepção e prática foi formulada por José Geraldo de Souza Júnior, professor da Universidade de Brasília, herdando um posicionamento de Roberto Lyra Filho (2002).
[4] Da mesma forma como é pura ideologia (agora como ilusão, enganação) acreditar que todos são iguais perante a lei.
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