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Vinício Carrilho

A cultura do erro


Cultura, em sua etmologia, vem do latim colere, ou seja, “cultivar”. Representa um complexo de manifestações, de saberes e, assim, constitui-se o conhecimento, a arte, as crenças, os hábitos, as aptidões que o homem adquire no meio social. Ela é influenciada por vários fatores. Há um mecanismo de adaptação, de resposta dos indivíduos ao meio. Também é cumulativa e dinâmica, na medida em que se transforma de geração para geração.A cultura do erro - Gente de Opinião

A partir do desenvolvimento desse conceito de cultura, surge a “cultura organizacional” que remete para um conjunto de normas, de padrões e de condições que definem a forma de atuação de uma organização ou de uma empresa. E aqui se inicia o problema sobre o qual nos debruçamos.

As pessoas responsáveis pelos departamentos jurídicos – via de regra, advogados – pactuam com o que se pode denominar de “cultura jurídica do erro/dolo planejado”. O juízo é simples: uma determinada empresa de saúde privada sabe que deve fornecer medicamentos para salvar a vida de seus associados, mas não o faz e uma pessoa morre de câncer.

Tempos depois seus familiares acionam a empresa para protestar pelo ressarcimento e por danos morais e materiais, além da indignação e do desprezo com a vida humana. Todos sabiam que tudo se daria exatamente deste modo, nada fizeram, a pessoa morreu e a empresa foi condenada moral e judicialmente. Neste caso, o juramento de Hipócrates converteu-se em julgamento de hipócritas.

Outro exemplo: tradicional faculdade de direito despreza tanto o direito que acaba colecionando ações trabalhistas. É motivo de chacota nas ruas da cidade. Como pode isso? - você pergunta. Não pode, mas acontece – e quase uma década depois de iniciado esse procedimento de violação de direitos fundamentais (quase todo o rosário do art. 7º da CF/88) os processos continuam a chegar.

Ocorre que o departamento jurídico, em ambos os casos, mesmo sabedor que as empresas deveriam seguir o direito – e aqui é o equivalente (apenas) a obedecer às regras do bom senso –, diz aos gestores que, judicialmente, conseguiram arrastar as pendengas e ganhar tempo. O que os doutos não falam é que, ao final, ao requerente, acabarão devedores de uma pequena fortuna. Se não fossem formados na base da chicana orientariam para que se evitasse o grave erro ou dolo contra o próprio patrimônio.

Esses procuradores do antidireito pensam que se batem na “luta pelo direito” (de que nos ensina Ihering), quando no fundo apenas tentam justificar a própria existência como profissionais. Sem as tais ações forjadas contra seus empregadores, o que poderiam fazer de fato, como manter os empregos?

É verdade que tempo é dinheiro (Time is Money), mas aqui ganhar tempo é o mesmo que perder muito dinheiro: praticam o antidireito e perdem dinheiro. A outra face do problema revela que somos criados, culturalmente, por uma falha grave de caráter. Aprendemos desde cedo muitas vezes com exemplos familiares, e depois profissionalmente, que o certo é levar vantagem em tudo, não apenas ganhar dinheiro mas principalmente isso – não obstante as consequências.

No direito, esse procedimento é nomeado. Chama-se de litigância de má-fé – e deve-se aqui, para nosso entendimento, ter-se uma ampla compreensão das implicações da litigância pelo antidireito.

Para melhor compreender, vejamos a parábola do filósofo do futebol que narra acertadamente que “uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa”. Esta lógica simples vale para o direito: defender o direito é uma coisa, lutar pelo respeito jurídico é um dever republicano, pois se patrocina o progresso civilizatório.

Toda luta acertada pelo direito, ainda que iniciada e limitada a alguns poucos sujeitos jurídicos, sinaliza pelo Justo e inflaciona o sistema com a obrigação de estender os benefícios e as conquistas aos outros indivíduos – pessoas que muitas vezes nem precisam acionar o sistema judicial. É como se o Poder Social fosse, realmente, impulsionado pelas conquistas adquiridas junto ao Poder Judiciário.

Contudo, outra situação bem diferente é advogar provocando o erro ou postergando a solução. O que dizer se não que estamos diante de um comportamento extremamente doloso?

Nesses casos as empresas deveriam ser penalizadas, responsabilizadas em ações públicas, porque provocam retardo na prestação jurisdicional e obstaculizam o sistema judicial já abarrotado e lerdo. Os juízes poderiam ajustar essas medidas reparadoras, por exemplo, aplicando as multas mais altas que o direito permita. Representaria uma atitude das mais corajosas!

Certo é que penalidades e multas são medidas paliativas, porque a “cultura do erro” no Brasil é ancestral, de meio milênio. Afinal, todos os desterrados que para cá vieram, também já haviam desembarcado do direito. Necessário ao coletivo jurídico brasileiro que as ações e procedimentos se pautem na lisura, no agir escorreito, posto que os benefícios lastrearão em todos, de uma forma ou de outra, uma vez que todos nós temos demandas, direitos a pleitear, documentos a conseguir, enfim. Necessidades naturais da vida nos tempos pós-modernos, o que justifica se possa pensar em um recomeço de civilização que, em século e meio, pode conhecer os primeiros resultados.
 

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia – UFRO, junto ao Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ. Pós-Doutor em Educação e em Ciências Sociais e Doutor pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Ciências e em Direito, é jornalista.

Layde Lana Borges da Silva

Professora Assistente I da Universidade Federal de Rondônia – UFRO, junto ao Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ. Mestre em Direito Processual pela Universidade Católica de Pernambuco. Bacharel em Direito. Coordenadora de Apoio Pedagógico – DCJ/UFRO.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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